sexta-feira, 17 de junho de 2011

Literatura Informativa

Poemas

História de uma viagem feita a terra do Brasil de Jean Lery
13.História de uma viagem feita a terra do Brasil
Voltando ao meu assunto, antes de falar nas carnes, peixes, frutas e outros mantimentos bem diversos dos da Europa, direi qual a bebida que usam os selvagens e o modo de faze-la. Cumpre, desde logo, notar que os homens não se envolvem de maneira nenhuma na preparação da bebida, a qual, como a farinha, está a cargo das mulheres. As raízes de aipim e mandioca, que servem de principal alimento aos selvagens, são também utilizadas no preparo de uma bebida usual. Depois de as cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as depois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que tudo esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em vasos de barro de capacidade igual a uma pipa de vinho de Borgonha. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. Esses vasos têm o feitio das grandes cubas de barro nas quais vi fazer-se a lixívia em alguns lugares do Bourbonais e da Auvergne; são entretanto mais estreitas no alto que no bojo.

Fazem o mesmo com a avati, a fim de preparar uma bebida do milho. São as mulheres, como já disse, que tudo fazem nessa preparação, tendo os homens a firme opinião de que se eles mastigarem as raízes ou o milho a bebida não sairá boa.”
“Antes de terminar tal assunto, e a fim de que os leitores se convençam de que se tivessem vinho à vontade enxugariam galhardamente o copo, vou contar uma história tragicômica, que em sua aldeia me contou um mussacá, isto é, um bom e hospitaleiro pai de família.
‘Surpreendemos uma vez, disse ele na sua rude linguagem, uma caravela de pêros (isto é, portugueses, que como já referi são inimigos mortais dos nossos tupinambás) na qual, de mortos e comidos todos os homens e recolhida a mercadoria existente, encontramos grandes caramemos (tonéis e outras vasilhas de madeira) cheias de bebida que logo tratamos de provar. Não sei qual qualidade de cauim era, nem se o tendes no vosso país; só sei dizer que depois de bebermos ficamos por três dias de tal forma prostrados e adormecidos que não podíamos despertar.’ É verossímil que fossem tonéis de bom vinho da Espanha, com os quais os selvagens, sem o saber, festejaram a Baco. Não é pois de admirar que o nosso homem se tivesse sentido tão repentinamente atordoado.
No que diz nos diz respeito, ao chegarmos a esse país procuramos evitar a mastigação no preparo do cauim e faze-lo de modo mais limpo. Por isso pilamos raízes de aipim e mandioca com milho, mas, para dizer a verdade, a experiência não provou bem. Pouco a pouco, nos habituamos a beber o cauim da outra espécie, embora não o fizéssemos comumente, pois tendo cana à vontade punhamo-la de infusão por alguns dias na água depois de refresca-la um pouco por causa do grande calor; e assim açucarada bebíamos a água com grande prazer.”
“Imediatamente depois de morto o prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta curto pranto; digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama fingidas lágrimas sobre o marido mas sempre na esperança de comer-lhe um pedaço. Em seguida, as outras mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas da carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros chegam com a água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão de cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o espostejam com tal rapidez que não faria melhor um carniceiro de nossa terra ao esquartejar um carneiro. E então, incrível crueldade, assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torna-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos uns após outros e lhes esfregam o corpo, os braços, e as pernas com o sangue inimigo a fim de torna-los mais valentes.
Depois da chegada dos cristãos a esse país, principiaram os selvagens a cortar e retalhar o corpo dos prisioneiros, animais e outras presas com facas e ferramentas dadas pelo estrangeiro, o que faziam antes com pedras aguçadas como me foi dito por um ancião.
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer ‘está muito bom’.”



05.Das arvores agrestes do Brasil de Frei Vicente do Salvador
05.Das arvores agrestes do Brasil

Há no Brasil grandíssimas matas de árvores agrestes, cedros,
carvalhos, vinháticos, angelins e outras não conhecidas em Espanha,
de madeiras fortíssimas para se poderem fazer delas fortíssimos
galeões e, o que mais é, que da casca de almas se tira estopa para se
calafetarem e fazem cordas para enxárcia e amarras, do que tudo se
aproveitam os que querem cá fazer navios, e se pudera aproveitar
el-rei se cá os mandara fazer. Mas os índios naturais da terra as
embarcações de que usam são canoas de um só pau, que lavram a
fogo e a ferro; e há paus tão grandes que ficam depois de cavadas
com dez palmos de boca de bordo a bordo, e tão compridas que
remam a vinte remos por bandas.

04.Não bastam forças humanas de José de Anchieta
04.Não bastam forças humanas

Não bastam forças humanas
Não digo para louvar,
Mas nem para bem cuidar
As mercês tão saborosas
Que com amor singular.
Deus eterno,
Abrindo o peito paterno,
Para que possa escapar
Do bravo fogo do inferno
E salvação alcançar.

03.Santa Maria de José de Anchieta
03.Santa Maria
Compaixão da Virgem na morte do Filho
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,

e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,

que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,

ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,

ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,

todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas

pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado

o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,

agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira

do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio

retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,

e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,

mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo

as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego

os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,

e c’o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua

misturado com sangue um rio todo d’água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama

para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,

tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina

cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada

a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,

ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,

se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,

porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,

que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?

que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,

em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,

em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,

pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:

colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,

à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega

do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência

do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga

quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,

ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:

era uma só e a mesma a vida de vós dois!

Pois se teu coração o conserva, e jamais

deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,

com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,

e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,

quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?

e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,

se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,

se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p’ra sofrer mais canseira:

já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:

eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,

fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,

faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!

tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:

que pregassem teus pés, teus punhos virginais.

Ele tomou p’ra si todo o cravo e madeiro

e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:

Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:

só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,

o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,

todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!

Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!

Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos

e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,

cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,

abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!

Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:

mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:

por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,

sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna

da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:

quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,

possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,

terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,

e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,

me será doce a vida, e será doce a morte!
terça-feira, 7 de junho de 201114.Em Deus, meu criador de José de Anchieta
Em Deus, Meu Criador

[...]



Não há coisa segura.



Tudo quanto se vê se vai passando.



A vida não tem dura.



O bem se vai gastando.



Toda a criatura passa voando.



[...]



Contente assim minh'alma,



do doce amor de Deus toda ferida,



o mundo deixa em calma,



buscando a outra vida,



no qual deseja ser absorvida.



[...]

11.Ao Santíssimo Sacramento de José de Anchieta
Ao Santíssimo Sacramento
Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar

Cada dia.


Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou

Crua morte.


E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento

Sua graça.


Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores

Esforçados.


Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão

Transitória.


Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento

Divinal.


Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem

Se contêm.


É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda

Do pecado.


Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,

A comer.


Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,

Isso basta.


Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor

Tudo abrasa.


É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam

De contino.


Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda

Satisfeita.


Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar

Nas entranhas.


Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar

De quem ama.


Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções

Copiosas.


Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor

Humanado!


Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende

Com tais nós?!


Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,

Se mudar.


Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção

De manjar,


Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes

Escondidos.


Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor

Filial,


Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento

De quem são,


Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores

Quis sofrer.


E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado

Desta vida.


Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém

Que buscamos!


Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração

Tem fartura.


Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,

Esta é.


Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos

Sem mudança.


Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado

Nos está.


A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada

Em pureza.


Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,

Pão de glória.


Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor

Verdadeiro.


Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,

Meu Amor.


Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,

Deus e Pai.


Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido

Para vós


Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,

que comprastes


Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes

Padecer.


Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi

Em amar-me.


Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo

Me mudais.


Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário

Que vos guarda.


Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto

Deste pão


Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite

De minha alma.


Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,

Doce beijo.


Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo

De perder.


Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,

Doce amor.


Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte

Com vos ver.

06.Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens de José de Anchieta
Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens
Diabo - Temos embargos, donzela
a serdes deste lugar.
Não me queirais agravar,
que, com espada e rodela,
vos hei de fazer voltar.
Se lá na batalha do mar
me pisastes,
quando as onze mil juntastes,
que fizestes em Deus crer,
não há agora assim de ser.
Se, então, de mim triunfastes,
hoje vos hei de vencer.
Não tenho contradição
em toda a Capitania.
Antes, ela, sem porfia,
debaixo de minha mão
se rendeu com alegria.
Cuido que errastes a via
e o sol tomastes mal.
Tornai-vos a Portugal,
que não tendes sol nem dia,
senão a noite infernal
de pecados,
em que os homens, ensopados,
aborrecem sempre a luz.
Se lhes falardes na Cruz,
dar-vos-ão, mui agastados,
no peito, com um arcabuz.
(Aqui dispara um arcabuz.)
Anjo - Ó peçonhento dragão
e pai de toda a mentira,
que procuras perdição,
com mui furiosa ira,
contra a humana geração!
Tu, nesta povoação,
não tens mando nem poder,
pois todos pretendem ser,
de todo seu coração,
inimigo de Lucifer.
Diabo - Ó que valentes soldados!
Agora me quero rir!...
Mal me podem resistir
os que fracos, com pecados,
não fazem senão cair!
Anjo - Se caem, logo me levantam,
e outros ficam em pé.
Os quais, com armas da fé,
te resistem e te espantam,
porque Deus com eles é.
Que com excessivo amor
lhes manda suas esposas
- onze mil virgens formosas -,
cujo contínuo favor
dará palmas gloriosas.
E para te dar maior pena,
a tua soberba inchada
quer que seja derrubada
por uma mulher pequena.
Diabo - Ó que cruel estocada
me atiraste
quando a mulher nomeaste!
Porque mulher me matou,
mulher meu poder tirou,
e, dando comigo ao traste,
a cabeça me quebrou.
Anjo - Pois agora essa mulher
traz consigo estas mulheres,
que nesta terra hão de ser
as que lhe alcançam poder
para vencer teus poderes.
Diabo - Ai de mim, desventurado!
(Acolhe-se Satanás.)
Anjo - Ó traidor, aqui jarás
de pés e mãos amarrado,
pois que perturbas a paz
deste pueblo sossegado!
Diabo - Ó anjo, deixa-me já,
que tremo desta senhora!
Anjo - Com tanto que te vás fora
e nunca mais tornes cá.
Diabo - Ora seja na má hora!
(Indo-se, diz ao povo:)
Ó, deixai-vos descansar
sobre esta minha promessa:
eu darei volta, depressa,
a vossas casas cercar
e quebrar-vos a cabeça!

II
Vila - Mais rica me vejo agora
que nunca dantes me vi,
pois que ter-vos, mereci,
virgem mártir, por senhora.
O Senhor onipotente
me fez grande benefício,
dando-me aquela excelente
legião da esforçada gente
do grande mártir Maurício.
Neste dia
se dobra minha alegria
com vossa vinda, Senhora.
E, pois a Capitania
hoje tem maior valia,
mais rica me vejo agora.
Com a perpétua memória
de vossa mui santa vida
e da morte esclarecida,
com que alcançastes vitória,
morrendo sem ser vencida,
serei mais favorecida,
pois vindes moram em mim.
Porque, tendo-vos aqui,
fico mais enriquecida
que nunca dantes me vi.
Da Senhora da Vitória,
"Vitória" sou nomeada.
E, pois sou de vós amada,
de onze mil virgens na glória
espero ser coroada.
Por vós sou alevantada
mais do que nunca subi,
para que, subindo assim,
não seja mais derrubada,
pois que ter-vos mereci.
Meus filhos ficam honrados
em vos terem por princesa,
porque, de sua baixeza,
por vós serão levantados
a ver a divina alteza.
Tudo temos,
pois que tendo a vós, teremos
a Deus, que convosco mora,
e logos, desde esta hora,
todos vos reconhecemos,
virgem mártir, por Senhora.
Um companheiro de São Maurício
vem ao caminho à virgem, e diz:
Toda esta Capitania,
virgem mártir gloriosa,
está cheia de alegria,
pois recebe, neste dia,
uma mãe tão piedosa.
Nós somos seus padroeiros,
com toda nossa legião
dos tebanos cavaleiros,
soldados e companheiros
de Maurício Capitão.
Ele espera já por vós
e tem prestes a pousada
para, com vossa manada,
serdes, como somos nós,
deste lugar advogada.
Úrsula - Para isso sou mandada.
E com vossa companhia,
faremos mui grossa armada,
com que seja bem guardada
a nossa capitania.

III
Ao entrar da igreja, fala São Maurício com são Vital, e diz:
Maurício - Não bastam forças humanas,
não digo para louvar,
mas nem para bem cuidar
as mercês tão soberanas
que, com amor singular,
Deus eterno,
abrindo o peito paterno,
faz a todo este lugar,
para que possa escapar
do bravo fogo do inferno,
e salvação alcançar.
Ditosa capitania,
que o sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor!
Vital - Ditosa, por certo, é,
se não for desconhecida,
ordenando sua vida
de modo que junte a fé
com caridade incendida.
Porque as mercês divinais
então são agradecidas
quando os corações leais
ordenam bem suas vidas
conforme as leis celestiais.
Maurício - Bem dizeis, irmão Vital,
e, por isso, os sabedores
dizem que obras são amores,
com que seu peito leal
mostram os bons amadores.
Vital - E destes, quantos cuidais
que se acham nesta terra?
Maurício - Muitos há, se bem olhais,
que contra os vícios mortais
andam em perpétua guerra,
e guardando, com cuidado,
a lei de seu Criador,
mostram bem o fino amor
que têm, no peito encerrado,
de Iesu, seu Salvador.
Vital - Estes tais sempre terão
lembrança do benefício
de terem por seu patrão,
com toda nossa legião,
a vós, Capitão Maurício.
Maurício - Assim têm.
E, por isso, o sumo bem
lhes manda aquelas senhoras
onze mil virgens, que vêm
para conosco, também,
serem suas guardadoras.
Vital - Tão gloriosas donzelas
merecem ser mui honradas.
Maurício - E conosco agasalhadas,
pois que são virgens tão belas,
de martírio coroadas!
Recebendo a virgem, diz:
Úrsula, grande princesa,
do sumo Deus mui amada,
boa seja a vossa entrada,
grande pastora e cabeça
de tão formosa manada!
Úrsula - Salve, grande Capitão
Maurício, de Deus querido!
Este povo é defendido
por vós e vossa legião
e nosso Deus mui servido.
Sou dele agora mandada
a ser vossa companheira.
Maurício - Defensora e padroeira
desta gente tão honrada,
que segue nossa bandeira.
Nós deles somos honrados,
eles guardados de nós.
Porque não sejamos sós,
serão agora ajudados
conosco também, de vós.
Úrsula - Se os nossos portugueses
nos quiserem sempre honrar,
sentirão poucos reveses.
De ingleses e franceses
seguros podem estar.
Vital - Quem levantará pendão
contra seis mil cavaleiros
de nossa forte legião,
e contra o grande esquadrão
de vossos onze milheiros?
Úrsula - Os três inimigos da alma
começam a desmaiar.
E, pois tem este lugar
nome de Vitória, e palma,
sempre deve triunfar.
Vitória - Isso é o que Deus quer.
Guardem eles seu mandado,
que nós teremos cuidado de guardar e engrandecer
este nosso povo amado.
Se quereis
aqui ficar, podereis.
Nem tendes melhor lugar
que aquele santo altar
no qual, conosco, sereis
venerada sem cessar.
Úrsula - Seja assim!
Recolhamo-nos aí,
com nosso senhor Jesus,
por cujo amor padeci,
abraçada com a cruz
em que ele morreu por mim.
Levando-a ao altar, lhe cantam:
Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
pois ele, com sua cruz,
vos coube dentro no peito.
Ó virgem de grão respeito,
entrai ad altare Dei,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ao dia do juizo - Barroco

O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!
Rompa todo o criado em um gemido,
Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.
Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo.

Gregorio de Matos

Desenganos da vida, metaforicamente - Barroco

É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

04.A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta piedade me despido;
Antes, quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória

02.A Cristo Senhor
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinqüido,
Vós tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Gregório de Matos

.À uma ausência - Barroco

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
no rigoroso fogo que me alenta;
o mal que me consome me sustenta;
o bem que me entretém me dá cuidado.

Ando sem me mover, falo calado;
o que mais perto vejo se me ausenta,
e o que estou sem ver mais me atormenta;
alegro-me de ver-me atormentado.

Choro no mesmo ponto em que me rio;
no mor risco que me anima a confiança;
do que menos se espera estou mais certo.

Mas se de confiado desconfio,
é porque, entre os receios da mudança,
ando perdido em mim como em deserto.

 Antônio Barbosa Bacelar

A instabilidade das coisas do mundo - Barroco

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Matos

Sermão dos bom sucessos das armas de Portugal contra a de Holanda - Barroco

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

 Padre Antônio Vieira

Sermão aos peixes - Barroco

No quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira, presto homenagem ao missionário, ao
orador, ao escritor, ao patriota, ao diplomata, ao perseguido pela Inquisição, ao defensor dos índios e
dos negros, puxando a atenção para a actualidade pavorosa do seu sermão aos peixes. Sermão de
invulgar coragem frente aos colonos do Brasil. Não tinha Cristo chamado aos pregadores o sal da terra?
Ora, "o efeito do sal é impedir a corrupção".


É preciso ouvir as repreensões, que, se não servirem de "emenda", servirão ao menos de "confusão". E qual é a confusão? É que os peixes como os homens se comem uns aos outros. O escândalo é grande, mas a circunstância fá-lo maior. "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Quando Portugal é apontado como o país da União Europeia com maior desigualdade na repartição dos
rendimentos e a corrupção campeia e os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais
pobres e se anuncia uma conflitualidade social iminente, que diria o Padre António Vieira? Perguntaria:
"Que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no
mundo?" E responderia: "A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são
os maiores, que comem os pequenos." "Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão
declaradamente a sua plebe; porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de
qualquer modo, senão que os engolem e devoram."


Que diria o Padre António Vieira frente a uma Justiça que não funciona ou que funciona mal e na qual os
mais fracos e pobres não podem confiar muito? "Vede um homem desses que andam perseguidos de
pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o
carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o a testemunha, come-o
o julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido."


Com a subida dos preços alimentares, está aí mais fome. Evidentemente, para os pequenos. Há razões
várias para a carência, mas uma delas é a especulação. Como é possível especular com o sangue dos
pobres? "Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome
de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos
inteiros. E de que modo os devoram e comem? Não como os outros comeres, senão como pão. A
diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o peixe,
dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que
sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos
grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis
pequenos."


Frente a uma ASAE que "permite" que governantes fumem em aviões fretados, mas inutiliza comida a
instituições de solidariedade social por incumprimento de regras meramente formais, que diria o Padre
António Vieira? "Os maiores comem os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um,
senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão
também de noite, às claras e às escuras." Os pequenos não têm nem fazem ofício "em que os não
carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e
devorem".

 Padre Antonio Vieira

Que falta nessa cidade?...............Verdade - Barroco

Que falta nesta cidade?.....................................Verdade
Que mais por sua desonra.................................Honra
Falta mais que se lhe ponha...............................Vergonha.

O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?...............................Negócio
Quem causa tal perdição?...................................Ambição
E o maior desta loucura?....................................Usura.

Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus doces objetos?......................Pretos
Tem outros bens mais maciços?..................................Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos? ........................Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?.............................Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?..................................Guardas
Quem as tem nos aposentos?..................................Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos,

E que justiça a resguarda? ....................................Bastarda
É grátis distribuída?..............................................Vendida
Quem tem, que a todos assusta?............................Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,
o que EL-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia?..............................................Simonia
E pelo membros da Igreja?.......................................Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?..................................Unha.

Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.

E nos Frades há manqueiras?...................................Freiras
Em que ocupam os serões?......................................Sermões
Não se ocupam em disputas?....................................Putas.

Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.

O açúcar já se acabou?.............................................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?........................................Subiu
Logo já convalesceu?................................................Morreu.

À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.

A Câmara não acode?.............................................Não pode
Pois não tem todo o poder?....................................Não quer
É que o governo convence?...................................Não vence.

Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

Gregório de Matos

Que os brasileiros são bestas - Barroco

"Que os brasileiros são Bestas,
e estão sempre a trabalhar
toda a vida, por manter
Maganos de Portugal."

 Gregório de Matos

O amor é finalmente - Barroco

Mandai-me Senhores, hoje
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.
Dizem que de clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas que o amor carrega.
O arco talvez de pipa,
a seta talvez esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira
E isto é o Amor? É um corno.
Isto é o Cupido? Má peça.
Aconselho que não comprem
Ainda que lhe achem venda
O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa é besta

 Gregório de Matos

Sermão da Sexagéssima - Barroco

. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório
saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado
com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que
todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare
evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto
dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também
faz caso do sair:
a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que
lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga
o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até
o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre
os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros
que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão
pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são
os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão,
mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhesão
a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes
de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do
Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os
de lá, com mais passos:
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo
que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque
os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar
e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem.
Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da
glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho, que
propriedades tinham?
vez que iam, não tornavam”. As rédeas por que se governavam
era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse espírito
tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer;
porque sair para tornar, melhor é não sair. Assim arguís com
muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse
semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se
se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele
as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?
Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou
o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear
(diz Cristo), mas com pouca ventura. “Uma parte do trigo caiu
entre espinhos, e afogaram-no os espinhos”:
spinas, et simul exortae spinae suffocaverunt illud
caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade”:
Nec revertebantur, cum ambularent: “UmaAliud cecidit inter. “Outra parte
Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem.
“Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e
comeram-no as aves”:
est, et volucres coeli comederunt illud.
criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as
criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas
racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os
animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis,
como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que
se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível
o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva
nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo,
que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras
secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no;
e os homens? Pisaram-no:
a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disselhes
desta maneira:
creaturae
Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As
pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?!
Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?!
Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os
Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas
bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em
todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens,
haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos,
haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos
vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas
as criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior.
A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e
para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram
lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado,
trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado:
aruit, quia non habebat humorem
suffocaverunt illud
trigo pisado:
evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta
parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na
boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos,
porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve
missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos
Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que
andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a
sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra
bem o
sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e
perseguidos dos homens:
o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela
seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim,
mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós
afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e
perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que
devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus
primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira?
Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que
não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos
com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto
desistir? Seria isto tornar atrás? – Não por certo. No mesmo texto
de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia
o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, “quando iam
não tornavam”:
dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que
“aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco”:
Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora
Ibant et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis.
se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como
diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e
volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar,
é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho.
Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira
perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade,
que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem
as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu,
colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara
cento:
PoisEt fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que
grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças
a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos,
lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador,
porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte
do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já
que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a
levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que
outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta
e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também?
Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o
que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os
frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores,
umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento;
aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto,
só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas
são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra
à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? – Não
será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque
eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas
para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma
matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo
aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta
Quaresma.
II
Semen est verbum Dei
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra
de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa
em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os
espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas,
com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras
são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de
Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações
inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do
Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e
todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem
ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações
bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica
a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que ´nse
colhe cento por um˙z:
Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo
hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso,
depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz
e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?
Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me
contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem
sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora
santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se
aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados
com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-laseis
todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de
Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta
reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e
vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas;
as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas
covas; e hoje? – Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas
pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se
semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um
homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um
moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que
é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim
a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois
se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem
hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da
palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a
matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim
será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que
aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder
de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte
do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por
meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o
pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte
com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a
graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias
três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego,
não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é
de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há
mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma
alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?
Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário
espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina;
Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com
os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das
almas por meio da pregação depende destes três concursos: de
Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender
que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por
parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar.
Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no
nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador,
uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas
três? – A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos;
a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram
os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo;
mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo
se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente
se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela
intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou
porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na
parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do
sol ou da chuva? – Porque o sol e a chuva são as influências da
parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus,
nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de
frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela
dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por
falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre
Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a
chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer,
se os nossos corações quiserem:
super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.
dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se
quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que
não há para que nos determos em mais prova.
vineae meae, et non feci?
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar
por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por
falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa
aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não
fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum
fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes, ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles
fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles
fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos
espinhos, nasceu, mas afogaram-no:
illud.
secou-se:
frutificou com grande multiplicação:
Simul exortae spinae suffocaveruntO trigo que caiu nas pedras, nasceu também, masEt natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu eEt natum fecit fructum centuplum.
De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e
frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu;
porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito
fruto e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz
efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos
espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas
pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras
e os espinhos. E porquê? – Os espinhos por agudos, as pedras por
duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades
endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos
agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a
esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a
picar a quem os não pica.
picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo
sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, e não é assim;
vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os
de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda
são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos
fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra
vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes
dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente
se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades
endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés
abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida:
Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae
.3
Induratum est cor Pharaonis
agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais
rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza,
nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os
espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria
deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse
a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que,
sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta
a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras,
nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações
secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende
confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos!
Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador
do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem
e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste
Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e
os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de
Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus
até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios
hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa,
nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos
da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por
parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por
parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto
a palavra de Deus? – Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores,
porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa nossa.
.4 E com os ouvintes de entendimentos
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação
tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas,
em qual consistirá esta culpa? – No pregador podem-se considerar
cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a
voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo
que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos
no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando
esta causa.
Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela
circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores
eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores
são eu e outros como eu? – Boa razão é esta. A definição
do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho
não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não
diz Cristo: saiu a semear o
semeia
que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra
coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa.
Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que
semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador
e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as
acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador,
ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o
exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito
que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? – É o
conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte
ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos,
antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são
tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou
o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a
pedra:
lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes
pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão:
tollebat citharam, et percutiebat manu sua.
comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar, faz-se
com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar
ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias
obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por
um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram
cem palavras? – Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram
muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem
ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? – Mandou
ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus,
enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus:
non factum
de Deus e obra de Deus juntamente:
maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou
Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com
a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo.
Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas
palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A
razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as
palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a
nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.
No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o
amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus
não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois
como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra
não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é
Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos
olhos:
de Deus pelos ouvidos:
crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes
em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão
seriam muito outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos,
conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram
uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o
auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos
e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção.
Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma
cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão
nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a
imagem do
bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as
bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo
o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha
dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos,
já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto
então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? – Porque então
era
do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura
entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco
abalo os nossos sermões? – Porque não pregamos aos olhos, pregamos
só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores?
– Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos,
o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam
penitência:
– e o exemplo clamava:
é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista
pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e
o exemplo clamava:
sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista
pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a
vaidade das galas; e o exemplo clamava:
está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício
à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros
do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo
clamava:
as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes
ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob
punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam,
e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados. Se quando
os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos
as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha
vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras
vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e
outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a
palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de
Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda
depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente, pouco caritativo,
pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria
estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso
de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos,
havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem
com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior
reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras.
Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo
tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado,
um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão
é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural.
Por isso Cristo comparou o pregar ao semear:
seminare.
uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes
tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura
tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria
tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte
sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador
do Evangelho. “Caía o trigo nos espinhos e nascia”:
inter spinas, et simul exortae spinae
e nascia”:
terra boa e nascia”:
trigo caindo e ia nascendo.
Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas e hão-de nascer;
tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo.
Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa!
Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio;
uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados,
outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não
vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está
aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair:
uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda
que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo,
há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de
cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas,
a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda
é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar;
hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hãode
ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é
para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada
que pareça caso e não estudo:
Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim
o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi
ele? – O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu.
Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum
– diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de
ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David;
tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos.
loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum.
quais são estes sermões e estas palavras do céu? – As palavras são
as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o
curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo
que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada
de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como
quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado,
mas como as estrelas:
estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não
é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas,
como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se
de uma parte há-de estar
de uma parte dizem
parte dizem
havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hãode
estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos
do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas
são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo
da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais
que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito
claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto;
tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham
muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas
estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o
matemático para as suas observações e para os seus juízos. De
maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever,
entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos
escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser
o sermão: – estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto.
Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o
querem honrar chamam-lhe
culto, os que o condenam chamamlhe
escuro
escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos
portugueses e havemos de ouvir um pregador em português
e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon
para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um
vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios,
porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor
que alegam é um enigma. Assim o disse o
o disse o
, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não éCeptro Penitente, assimEvangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o
Favo de Claraval
modo de alegar! O
todos os ceptros não foram penitência; o
é S. Lucas; o
Santo Agostinho; a
Ouro
de Belém
a
assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se
houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis
de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necedade,
como há-de ser discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo
pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com
Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro, com
Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia,
com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a
tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de
beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de
nossa queixa?"
[...]

 Padre Antônio Vieira

Levanta-te berzabu - Barroco

Lobo cerval, fantasma pecadora,
alimária cristã, salvage humana,
Que eras com vara pescador de cana,
Quando devias ser burro de nora.

Leve-te Berzabu, vai-te em má hora,
Levanta já daqui fato, e cabana,
E não pares senão na Trapobana,
Ou no centro da Líbia abrasadora.

Parta-te um rato, queime-te um corisco
Na cama estejas tu, sejas na rua,
Sepultura te dêem montes de cisco.

E toda aquela cousa, que for tua
Corra sempre contigo o mesmo risco,
Ó salvage cristã, ó besta crua.

 Gregório de Matos

Vós, diz Cristo Senhor - Barroco

“Vos estis sal terrae
Vós, diz Cristo, senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra; e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal.
O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?
Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra, ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites.
Não é tudo isto verdade? Ainda mal.”

Pe. Antônio Vieira

Um exemplo de poesia cultista - Barroco

"Se gostas da afetação e pompa de palavras
e do estilo que chamam culto, não me leias.
Quando este estilo florescia, nasceram as
primeiras verduras do meu; mas valeu-me
tanto sempre a clareza, que só porque me
entendiam comecei a ser ouvido. (...) Este
desventurado estilo que hoje se usa, os que
o querem honrar chamam-lhe culto, os que
o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda
lhe fazem muita honra. O estilo culto não é
escuro, é negro, e negro boçal e muito
cerrado. Ë possível que somos portugueses,
e havemos de ouvir um pregador em
português, e não havemos de entender o
que diz?!"

Gregório de Matos

Décima - Barroco

Estais dada a Bersabu,
Chica, e não tendes razão,
Sofrei-me Maria João,
pois eu vos sofro a Mungu:
vós dais ao rabo, e ao cu,
eu dou ao cu, e ao rabo,
vós com um Negro diabo,
eu com uma Negrinha brava,
pois fique fava por fava,
e quiabo por quiabo.
Vós heis de achar-me escorrido,
não vo-lo posso negar,
eu também o hei de achar
remolhado, e rebatido
assim é igual o partido,
e mesmíssima a razão,
porque quando o vosso cão
dorme c’oa a minha cadela,
que fique ela por ela,
diz um português rifão.
Vós dizeis-me irada e ingrata,
c’oa a mão na barguilha posta”
eu me verei bem disposta”
e eu digo-vos: “Quien se mata?”
eu vou-me à putinha grata,
e descarrego o culhão,
vós ides ao vosso cão,
e regalais o pasmado,
leve ao diabo enganado,
e andemos c’oa a procissão.
Chica, fazei-me justiça,
e não vo-la faça eu só,
eu vos deixo o vosso có,
vós deixai-me a minha piça:
e se o demo vos atiça
mamar numa e noutra teta,
pica branca e pica preta,
eu também por me fartar
quero esta pica trilhar,
numa grêta e nutra grêta.
Dizem que o ano passado
mantínheis dez fodilhões
branco um, nove canzarrões,
o branco era o dizimado,
o branco era o escornado,
por ter pouco, e brando nabo;
hoje o vosso sujo rabo
me quer a mim dizimar,
que não hei de suportar
ser dízimo do diabo.
Chica, dormi-vos por lá,
tendo de negros um cento,
que o pau branco é corticento,
e o negro jacarandá:
e deixai-me andar por cá
entre as negras do meu jeito,
mas perdendo-me o respeito,
se o vosso guardar quereis,
contra o direito obrareis,
sendo amiga do direito.
Sois puta de entranha dura,
e inda que amiga do alho
sois uma arranha-caralho
sem carinho, nem brandura
dou ao demo a puta escura,
que estando a tôdas exposta,
não faz festa ao de que gosta;
dou ao demo o quies vel qui,
e não para quem a encosta.
Quem não afaga o sendeiro,
de que gosta, e bem lhe sabe,
vá-se dormir cuma trave,
e esfregue-se num coqueiro:
seja o cono presenteiro,
faça o mínimo agasalho
ao membro, que lhe dá o alho,
e se de carinho é escassa,
ou vá se enforcar , ou faça,
do seu dedo o seu caralho.

Gregório de Matos

O tempo e o amor - Barroco

Amor e Tempo,Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera !
São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor ?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter amado muito, de amar menos.

Padre Antônio Vieira

A cada canto um conselheiro - Barroco

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.

Gregório de Matos

Aos vicios - Barroco

Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro diferente.
Já sinto que me inflama e que me inspira
Talia, que anjo é da minha guarda
Dês que Apolo mandou que me assistira.
Arda Baiona e todo o mundo arda
Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.
Nenhum tempo excetua a cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liherdade.
A narração há de igualar ao caso
E se talvez acaso o não iguala
Não tenho por poeta o que é Pegaso.
De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente
Sempre se há de sentir o que se fa1a.
Qual homem pode haver tão paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia
Não chore, não suspire e não lamente?
Isto faz a discreta fantasia:
Discorre em um e outro desconcerto
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.
O néscio, o ignorante, o inexperto
Que não elege o bom, nem mau reprova
Por tudo passa deslumbrado e incerto.
E quando vê talvez na doce trova
Louvado o bem e o mal vituperado
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Diz logo prudentaço e repousado:
-Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.
Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazaras
Musas, que estimo ter, quando as invoco.
Se souberas falar, também falaras
Também satirizaras, se souberas
E se foras poeta, poetizaras.
A ignorancia dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não ‑--por não ter dentes.
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
Uma só natureza nos foi dada
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou e esse de nada.
Todos somos ruins, todos perversos,
Só nos distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos
Quem maior a tiver do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem‑se os mais chitom, e haja saúde.

 Gregório de Matos

A um comedor exagerado - Barroco

Levou um livreiro a dente

De alfaces todo um canteiro,

E comeu, sendo livreiro,

Desencadernadamente.

Porém eu digo que mente

A quem disso o quer tachar:

Antes é para notar

Que trabalhou como mouro,

Pois meter folhas no couro

Também é encadernar.

(A um músico esbordoado)

Uma grave entonação

Vos cantaram, Brás Luís,

Segundo se conta e diz,

Por solfa de fabordão.

Pelo compasso da mão,

Onde a valia se apura,

Parecia solfa escura:

Porque a mão nunca parava,

Nem no ar, nem no chão dava,

Sempre em cima da figura.

Gregório de Matos

Ardor em firme coração nascido - Barroco

Ardor em firme coração nascido;
pranto por belos olhos derramado;
incêndio em mares de água disfarçado;
rio de neve em fogo convertido:
tu, que em um peito abrasas escondido;
tu, que em um rosto corres desatado;
quando fogo, em cristais aprisionado;
quando crista, em chamas derretido.
Se és fogo, como passas brandamente,
se és fogo, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania,
como quis que aqui fosse a neve ardente,
permitiu parecesse a chama fria.

 Gregório de Matos