sexta-feira, 17 de junho de 2011

Literatura Informativa

Poemas

História de uma viagem feita a terra do Brasil de Jean Lery
13.História de uma viagem feita a terra do Brasil
Voltando ao meu assunto, antes de falar nas carnes, peixes, frutas e outros mantimentos bem diversos dos da Europa, direi qual a bebida que usam os selvagens e o modo de faze-la. Cumpre, desde logo, notar que os homens não se envolvem de maneira nenhuma na preparação da bebida, a qual, como a farinha, está a cargo das mulheres. As raízes de aipim e mandioca, que servem de principal alimento aos selvagens, são também utilizadas no preparo de uma bebida usual. Depois de as cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as depois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que tudo esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em vasos de barro de capacidade igual a uma pipa de vinho de Borgonha. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. Esses vasos têm o feitio das grandes cubas de barro nas quais vi fazer-se a lixívia em alguns lugares do Bourbonais e da Auvergne; são entretanto mais estreitas no alto que no bojo.

Fazem o mesmo com a avati, a fim de preparar uma bebida do milho. São as mulheres, como já disse, que tudo fazem nessa preparação, tendo os homens a firme opinião de que se eles mastigarem as raízes ou o milho a bebida não sairá boa.”
“Antes de terminar tal assunto, e a fim de que os leitores se convençam de que se tivessem vinho à vontade enxugariam galhardamente o copo, vou contar uma história tragicômica, que em sua aldeia me contou um mussacá, isto é, um bom e hospitaleiro pai de família.
‘Surpreendemos uma vez, disse ele na sua rude linguagem, uma caravela de pêros (isto é, portugueses, que como já referi são inimigos mortais dos nossos tupinambás) na qual, de mortos e comidos todos os homens e recolhida a mercadoria existente, encontramos grandes caramemos (tonéis e outras vasilhas de madeira) cheias de bebida que logo tratamos de provar. Não sei qual qualidade de cauim era, nem se o tendes no vosso país; só sei dizer que depois de bebermos ficamos por três dias de tal forma prostrados e adormecidos que não podíamos despertar.’ É verossímil que fossem tonéis de bom vinho da Espanha, com os quais os selvagens, sem o saber, festejaram a Baco. Não é pois de admirar que o nosso homem se tivesse sentido tão repentinamente atordoado.
No que diz nos diz respeito, ao chegarmos a esse país procuramos evitar a mastigação no preparo do cauim e faze-lo de modo mais limpo. Por isso pilamos raízes de aipim e mandioca com milho, mas, para dizer a verdade, a experiência não provou bem. Pouco a pouco, nos habituamos a beber o cauim da outra espécie, embora não o fizéssemos comumente, pois tendo cana à vontade punhamo-la de infusão por alguns dias na água depois de refresca-la um pouco por causa do grande calor; e assim açucarada bebíamos a água com grande prazer.”
“Imediatamente depois de morto o prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta curto pranto; digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama fingidas lágrimas sobre o marido mas sempre na esperança de comer-lhe um pedaço. Em seguida, as outras mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas da carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros chegam com a água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão de cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o espostejam com tal rapidez que não faria melhor um carniceiro de nossa terra ao esquartejar um carneiro. E então, incrível crueldade, assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torna-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos uns após outros e lhes esfregam o corpo, os braços, e as pernas com o sangue inimigo a fim de torna-los mais valentes.
Depois da chegada dos cristãos a esse país, principiaram os selvagens a cortar e retalhar o corpo dos prisioneiros, animais e outras presas com facas e ferramentas dadas pelo estrangeiro, o que faziam antes com pedras aguçadas como me foi dito por um ancião.
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer ‘está muito bom’.”



05.Das arvores agrestes do Brasil de Frei Vicente do Salvador
05.Das arvores agrestes do Brasil

Há no Brasil grandíssimas matas de árvores agrestes, cedros,
carvalhos, vinháticos, angelins e outras não conhecidas em Espanha,
de madeiras fortíssimas para se poderem fazer delas fortíssimos
galeões e, o que mais é, que da casca de almas se tira estopa para se
calafetarem e fazem cordas para enxárcia e amarras, do que tudo se
aproveitam os que querem cá fazer navios, e se pudera aproveitar
el-rei se cá os mandara fazer. Mas os índios naturais da terra as
embarcações de que usam são canoas de um só pau, que lavram a
fogo e a ferro; e há paus tão grandes que ficam depois de cavadas
com dez palmos de boca de bordo a bordo, e tão compridas que
remam a vinte remos por bandas.

04.Não bastam forças humanas de José de Anchieta
04.Não bastam forças humanas

Não bastam forças humanas
Não digo para louvar,
Mas nem para bem cuidar
As mercês tão saborosas
Que com amor singular.
Deus eterno,
Abrindo o peito paterno,
Para que possa escapar
Do bravo fogo do inferno
E salvação alcançar.

03.Santa Maria de José de Anchieta
03.Santa Maria
Compaixão da Virgem na morte do Filho
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,

e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,

que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,

ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,

ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,

todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas

pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado

o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,

agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira

do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio

retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,

e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,

mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo

as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego

os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,

e c’o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua

misturado com sangue um rio todo d’água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama

para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,

tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina

cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada

a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,

ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,

se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,

porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,

que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?

que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,

em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,

em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,

pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:

colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,

à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega

do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência

do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga

quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,

ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:

era uma só e a mesma a vida de vós dois!

Pois se teu coração o conserva, e jamais

deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,

com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,

e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,

quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?

e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,

se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,

se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p’ra sofrer mais canseira:

já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:

eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,

fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,

faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!

tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:

que pregassem teus pés, teus punhos virginais.

Ele tomou p’ra si todo o cravo e madeiro

e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:

Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:

só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,

o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,

todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!

Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!

Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos

e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,

cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,

abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!

Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:

mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:

por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,

sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna

da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:

quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,

possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,

terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,

e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,

me será doce a vida, e será doce a morte!
terça-feira, 7 de junho de 201114.Em Deus, meu criador de José de Anchieta
Em Deus, Meu Criador

[...]



Não há coisa segura.



Tudo quanto se vê se vai passando.



A vida não tem dura.



O bem se vai gastando.



Toda a criatura passa voando.



[...]



Contente assim minh'alma,



do doce amor de Deus toda ferida,



o mundo deixa em calma,



buscando a outra vida,



no qual deseja ser absorvida.



[...]

11.Ao Santíssimo Sacramento de José de Anchieta
Ao Santíssimo Sacramento
Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar

Cada dia.


Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou

Crua morte.


E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento

Sua graça.


Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores

Esforçados.


Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão

Transitória.


Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento

Divinal.


Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem

Se contêm.


É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda

Do pecado.


Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,

A comer.


Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,

Isso basta.


Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor

Tudo abrasa.


É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam

De contino.


Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda

Satisfeita.


Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar

Nas entranhas.


Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar

De quem ama.


Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções

Copiosas.


Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor

Humanado!


Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende

Com tais nós?!


Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,

Se mudar.


Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção

De manjar,


Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes

Escondidos.


Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor

Filial,


Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento

De quem são,


Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores

Quis sofrer.


E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado

Desta vida.


Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém

Que buscamos!


Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração

Tem fartura.


Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,

Esta é.


Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos

Sem mudança.


Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado

Nos está.


A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada

Em pureza.


Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,

Pão de glória.


Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor

Verdadeiro.


Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,

Meu Amor.


Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,

Deus e Pai.


Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido

Para vós


Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,

que comprastes


Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes

Padecer.


Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi

Em amar-me.


Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo

Me mudais.


Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário

Que vos guarda.


Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto

Deste pão


Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite

De minha alma.


Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,

Doce beijo.


Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo

De perder.


Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,

Doce amor.


Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte

Com vos ver.

06.Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens de José de Anchieta
Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens
Diabo - Temos embargos, donzela
a serdes deste lugar.
Não me queirais agravar,
que, com espada e rodela,
vos hei de fazer voltar.
Se lá na batalha do mar
me pisastes,
quando as onze mil juntastes,
que fizestes em Deus crer,
não há agora assim de ser.
Se, então, de mim triunfastes,
hoje vos hei de vencer.
Não tenho contradição
em toda a Capitania.
Antes, ela, sem porfia,
debaixo de minha mão
se rendeu com alegria.
Cuido que errastes a via
e o sol tomastes mal.
Tornai-vos a Portugal,
que não tendes sol nem dia,
senão a noite infernal
de pecados,
em que os homens, ensopados,
aborrecem sempre a luz.
Se lhes falardes na Cruz,
dar-vos-ão, mui agastados,
no peito, com um arcabuz.
(Aqui dispara um arcabuz.)
Anjo - Ó peçonhento dragão
e pai de toda a mentira,
que procuras perdição,
com mui furiosa ira,
contra a humana geração!
Tu, nesta povoação,
não tens mando nem poder,
pois todos pretendem ser,
de todo seu coração,
inimigo de Lucifer.
Diabo - Ó que valentes soldados!
Agora me quero rir!...
Mal me podem resistir
os que fracos, com pecados,
não fazem senão cair!
Anjo - Se caem, logo me levantam,
e outros ficam em pé.
Os quais, com armas da fé,
te resistem e te espantam,
porque Deus com eles é.
Que com excessivo amor
lhes manda suas esposas
- onze mil virgens formosas -,
cujo contínuo favor
dará palmas gloriosas.
E para te dar maior pena,
a tua soberba inchada
quer que seja derrubada
por uma mulher pequena.
Diabo - Ó que cruel estocada
me atiraste
quando a mulher nomeaste!
Porque mulher me matou,
mulher meu poder tirou,
e, dando comigo ao traste,
a cabeça me quebrou.
Anjo - Pois agora essa mulher
traz consigo estas mulheres,
que nesta terra hão de ser
as que lhe alcançam poder
para vencer teus poderes.
Diabo - Ai de mim, desventurado!
(Acolhe-se Satanás.)
Anjo - Ó traidor, aqui jarás
de pés e mãos amarrado,
pois que perturbas a paz
deste pueblo sossegado!
Diabo - Ó anjo, deixa-me já,
que tremo desta senhora!
Anjo - Com tanto que te vás fora
e nunca mais tornes cá.
Diabo - Ora seja na má hora!
(Indo-se, diz ao povo:)
Ó, deixai-vos descansar
sobre esta minha promessa:
eu darei volta, depressa,
a vossas casas cercar
e quebrar-vos a cabeça!

II
Vila - Mais rica me vejo agora
que nunca dantes me vi,
pois que ter-vos, mereci,
virgem mártir, por senhora.
O Senhor onipotente
me fez grande benefício,
dando-me aquela excelente
legião da esforçada gente
do grande mártir Maurício.
Neste dia
se dobra minha alegria
com vossa vinda, Senhora.
E, pois a Capitania
hoje tem maior valia,
mais rica me vejo agora.
Com a perpétua memória
de vossa mui santa vida
e da morte esclarecida,
com que alcançastes vitória,
morrendo sem ser vencida,
serei mais favorecida,
pois vindes moram em mim.
Porque, tendo-vos aqui,
fico mais enriquecida
que nunca dantes me vi.
Da Senhora da Vitória,
"Vitória" sou nomeada.
E, pois sou de vós amada,
de onze mil virgens na glória
espero ser coroada.
Por vós sou alevantada
mais do que nunca subi,
para que, subindo assim,
não seja mais derrubada,
pois que ter-vos mereci.
Meus filhos ficam honrados
em vos terem por princesa,
porque, de sua baixeza,
por vós serão levantados
a ver a divina alteza.
Tudo temos,
pois que tendo a vós, teremos
a Deus, que convosco mora,
e logos, desde esta hora,
todos vos reconhecemos,
virgem mártir, por Senhora.
Um companheiro de São Maurício
vem ao caminho à virgem, e diz:
Toda esta Capitania,
virgem mártir gloriosa,
está cheia de alegria,
pois recebe, neste dia,
uma mãe tão piedosa.
Nós somos seus padroeiros,
com toda nossa legião
dos tebanos cavaleiros,
soldados e companheiros
de Maurício Capitão.
Ele espera já por vós
e tem prestes a pousada
para, com vossa manada,
serdes, como somos nós,
deste lugar advogada.
Úrsula - Para isso sou mandada.
E com vossa companhia,
faremos mui grossa armada,
com que seja bem guardada
a nossa capitania.

III
Ao entrar da igreja, fala São Maurício com são Vital, e diz:
Maurício - Não bastam forças humanas,
não digo para louvar,
mas nem para bem cuidar
as mercês tão soberanas
que, com amor singular,
Deus eterno,
abrindo o peito paterno,
faz a todo este lugar,
para que possa escapar
do bravo fogo do inferno,
e salvação alcançar.
Ditosa capitania,
que o sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor!
Vital - Ditosa, por certo, é,
se não for desconhecida,
ordenando sua vida
de modo que junte a fé
com caridade incendida.
Porque as mercês divinais
então são agradecidas
quando os corações leais
ordenam bem suas vidas
conforme as leis celestiais.
Maurício - Bem dizeis, irmão Vital,
e, por isso, os sabedores
dizem que obras são amores,
com que seu peito leal
mostram os bons amadores.
Vital - E destes, quantos cuidais
que se acham nesta terra?
Maurício - Muitos há, se bem olhais,
que contra os vícios mortais
andam em perpétua guerra,
e guardando, com cuidado,
a lei de seu Criador,
mostram bem o fino amor
que têm, no peito encerrado,
de Iesu, seu Salvador.
Vital - Estes tais sempre terão
lembrança do benefício
de terem por seu patrão,
com toda nossa legião,
a vós, Capitão Maurício.
Maurício - Assim têm.
E, por isso, o sumo bem
lhes manda aquelas senhoras
onze mil virgens, que vêm
para conosco, também,
serem suas guardadoras.
Vital - Tão gloriosas donzelas
merecem ser mui honradas.
Maurício - E conosco agasalhadas,
pois que são virgens tão belas,
de martírio coroadas!
Recebendo a virgem, diz:
Úrsula, grande princesa,
do sumo Deus mui amada,
boa seja a vossa entrada,
grande pastora e cabeça
de tão formosa manada!
Úrsula - Salve, grande Capitão
Maurício, de Deus querido!
Este povo é defendido
por vós e vossa legião
e nosso Deus mui servido.
Sou dele agora mandada
a ser vossa companheira.
Maurício - Defensora e padroeira
desta gente tão honrada,
que segue nossa bandeira.
Nós deles somos honrados,
eles guardados de nós.
Porque não sejamos sós,
serão agora ajudados
conosco também, de vós.
Úrsula - Se os nossos portugueses
nos quiserem sempre honrar,
sentirão poucos reveses.
De ingleses e franceses
seguros podem estar.
Vital - Quem levantará pendão
contra seis mil cavaleiros
de nossa forte legião,
e contra o grande esquadrão
de vossos onze milheiros?
Úrsula - Os três inimigos da alma
começam a desmaiar.
E, pois tem este lugar
nome de Vitória, e palma,
sempre deve triunfar.
Vitória - Isso é o que Deus quer.
Guardem eles seu mandado,
que nós teremos cuidado de guardar e engrandecer
este nosso povo amado.
Se quereis
aqui ficar, podereis.
Nem tendes melhor lugar
que aquele santo altar
no qual, conosco, sereis
venerada sem cessar.
Úrsula - Seja assim!
Recolhamo-nos aí,
com nosso senhor Jesus,
por cujo amor padeci,
abraçada com a cruz
em que ele morreu por mim.
Levando-a ao altar, lhe cantam:
Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
pois ele, com sua cruz,
vos coube dentro no peito.
Ó virgem de grão respeito,
entrai ad altare Dei,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ao dia do juizo - Barroco

O alegre do dia entristecido,
O silêncio da noite perturbado
O resplendor do sol todo eclipsado,
E o luzente da lua desmentido!
Rompa todo o criado em um gemido,
Que é de ti mundo? onde tens parado?
Se tudo neste instante está acabado,
Tanto importa o não ser, como haver sido.
Soa a trombeta da maior altura,
A que a vivos, e mortos traz o aviso
Da desventura de uns, d’outros ventura.
Acabe o mundo, porque é já preciso,
Erga-se o morto, deixe a sepultura,
Porque é chegado o dia do juízo.

Gregorio de Matos

Desenganos da vida, metaforicamente - Barroco

É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.

É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.

É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias apresta, alentos presa:

Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?

04.A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta piedade me despido;
Antes, quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida já cobrada,
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória

02.A Cristo Senhor
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinqüido,
Vós tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

Gregório de Matos

.À uma ausência - Barroco

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
no rigoroso fogo que me alenta;
o mal que me consome me sustenta;
o bem que me entretém me dá cuidado.

Ando sem me mover, falo calado;
o que mais perto vejo se me ausenta,
e o que estou sem ver mais me atormenta;
alegro-me de ver-me atormentado.

Choro no mesmo ponto em que me rio;
no mor risco que me anima a confiança;
do que menos se espera estou mais certo.

Mas se de confiado desconfio,
é porque, entre os receios da mudança,
ando perdido em mim como em deserto.

 Antônio Barbosa Bacelar

A instabilidade das coisas do mundo - Barroco

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

Gregório de Matos

Sermão dos bom sucessos das armas de Portugal contra a de Holanda - Barroco

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

 Padre Antônio Vieira

Sermão aos peixes - Barroco

No quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira, presto homenagem ao missionário, ao
orador, ao escritor, ao patriota, ao diplomata, ao perseguido pela Inquisição, ao defensor dos índios e
dos negros, puxando a atenção para a actualidade pavorosa do seu sermão aos peixes. Sermão de
invulgar coragem frente aos colonos do Brasil. Não tinha Cristo chamado aos pregadores o sal da terra?
Ora, "o efeito do sal é impedir a corrupção".


É preciso ouvir as repreensões, que, se não servirem de "emenda", servirão ao menos de "confusão". E qual é a confusão? É que os peixes como os homens se comem uns aos outros. O escândalo é grande, mas a circunstância fá-lo maior. "Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande."
Quando Portugal é apontado como o país da União Europeia com maior desigualdade na repartição dos
rendimentos e a corrupção campeia e os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais
pobres e se anuncia uma conflitualidade social iminente, que diria o Padre António Vieira? Perguntaria:
"Que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no
mundo?" E responderia: "A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são
os maiores, que comem os pequenos." "Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão
declaradamente a sua plebe; porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos
podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de
qualquer modo, senão que os engolem e devoram."


Que diria o Padre António Vieira frente a uma Justiça que não funciona ou que funciona mal e na qual os
mais fracos e pobres não podem confiar muito? "Vede um homem desses que andam perseguidos de
pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o
carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o a testemunha, come-o
o julgador, e ainda não está sentenciado e já está comido."


Com a subida dos preços alimentares, está aí mais fome. Evidentemente, para os pequenos. Há razões
várias para a carência, mas uma delas é a especulação. Como é possível especular com o sangue dos
pobres? "Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome
de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos, senão que devoram e engolem os povos
inteiros. E de que modo os devoram e comem? Não como os outros comeres, senão como pão. A
diferença que há entre o pão e os outros comeres é que para a carne há dias de carne, e para o peixe,
dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que
sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos
grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis
pequenos."


Frente a uma ASAE que "permite" que governantes fumem em aviões fretados, mas inutiliza comida a
instituições de solidariedade social por incumprimento de regras meramente formais, que diria o Padre
António Vieira? "Os maiores comem os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um,
senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão
também de noite, às claras e às escuras." Os pequenos não têm nem fazem ofício "em que os não
carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e
devorem".

 Padre Antonio Vieira

Que falta nessa cidade?...............Verdade - Barroco

Que falta nesta cidade?.....................................Verdade
Que mais por sua desonra.................................Honra
Falta mais que se lhe ponha...............................Vergonha.

O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?...............................Negócio
Quem causa tal perdição?...................................Ambição
E o maior desta loucura?....................................Usura.

Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus doces objetos?......................Pretos
Tem outros bens mais maciços?..................................Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos? ........................Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?.............................Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?..................................Guardas
Quem as tem nos aposentos?..................................Sargentos.

Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos,

E que justiça a resguarda? ....................................Bastarda
É grátis distribuída?..............................................Vendida
Quem tem, que a todos assusta?............................Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,
o que EL-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia?..............................................Simonia
E pelo membros da Igreja?.......................................Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?..................................Unha.

Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.

E nos Frades há manqueiras?...................................Freiras
Em que ocupam os serões?......................................Sermões
Não se ocupam em disputas?....................................Putas.

Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.

O açúcar já se acabou?.............................................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?........................................Subiu
Logo já convalesceu?................................................Morreu.

À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.

A Câmara não acode?.............................................Não pode
Pois não tem todo o poder?....................................Não quer
É que o governo convence?...................................Não vence.

Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

Gregório de Matos

Que os brasileiros são bestas - Barroco

"Que os brasileiros são Bestas,
e estão sempre a trabalhar
toda a vida, por manter
Maganos de Portugal."

 Gregório de Matos

O amor é finalmente - Barroco

Mandai-me Senhores, hoje
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.
Dizem que de clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas que o amor carrega.
O arco talvez de pipa,
a seta talvez esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira
E isto é o Amor? É um corno.
Isto é o Cupido? Má peça.
Aconselho que não comprem
Ainda que lhe achem venda
O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa é besta

 Gregório de Matos

Sermão da Sexagéssima - Barroco

. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório
saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado
com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que
todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare
evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto
dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também
faz caso do sair:
a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que
lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga
o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até
o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre
os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros
que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão
pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são
os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão,
mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhesão
a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes
de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do
Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os
de lá, com mais passos:
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo
que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque
os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar
e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem.
Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da
glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho, que
propriedades tinham?
vez que iam, não tornavam”. As rédeas por que se governavam
era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse espírito
tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer;
porque sair para tornar, melhor é não sair. Assim arguís com
muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse
semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se
se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele
as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?
Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou
o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear
(diz Cristo), mas com pouca ventura. “Uma parte do trigo caiu
entre espinhos, e afogaram-no os espinhos”:
spinas, et simul exortae spinae suffocaverunt illud
caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade”:
Nec revertebantur, cum ambularent: “UmaAliud cecidit inter. “Outra parte
Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem.
“Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e
comeram-no as aves”:
est, et volucres coeli comederunt illud.
criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as
criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas
racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os
animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis,
como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que
se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível
o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva
nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo,
que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras
secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no;
e os homens? Pisaram-no:
a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disselhes
desta maneira:
creaturae
Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As
pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?!
Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?!
Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os
Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas
bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em
todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens,
haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos,
haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos
vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas
as criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior.
A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e
para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram
lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado,
trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado:
aruit, quia non habebat humorem
suffocaverunt illud
trigo pisado:
evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta
parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na
boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos,
porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve
missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos
Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que
andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a
sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra
bem o
sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e
perseguidos dos homens:
o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela
seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim,
mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós
afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e
perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que
devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus
primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira?
Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que
não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos
com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto
desistir? Seria isto tornar atrás? – Não por certo. No mesmo texto
de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia
o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, “quando iam
não tornavam”:
dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que
“aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco”:
Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora
Ibant et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis.
se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como
diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e
volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar,
é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho.
Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira
perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade,
que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem
as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu,
colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara
cento:
PoisEt fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que
grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças
a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos,
lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador,
porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte
do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já
que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a
levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que
outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta
e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também?
Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o
que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os
frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores,
umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento;
aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto,
só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas
são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra
à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? – Não
será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque
eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas
para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma
matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo
aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta
Quaresma.
II
Semen est verbum Dei
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra
de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa
em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os
espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas,
com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras
são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de
Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações
inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do
Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e
todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem
ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações
bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica
a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que ´nse
colhe cento por um˙z:
Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo
hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso,
depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz
e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?
Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me
contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem
sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora
santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se
aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados
com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-laseis
todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de
Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta
reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e
vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas;
as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas
covas; e hoje? – Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas
pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se
semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um
homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um
moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que
é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim
a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois
se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem
hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da
palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a
matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim
será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que
aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder
de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte
do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por
meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o
pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte
com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a
graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias
três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego,
não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é
de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há
mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma
alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?
Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário
espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina;
Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com
os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das
almas por meio da pregação depende destes três concursos: de
Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender
que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por
parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar.
Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no
nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador,
uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas
três? – A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos;
a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram
os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo;
mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo
se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente
se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela
intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou
porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na
parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do
sol ou da chuva? – Porque o sol e a chuva são as influências da
parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus,
nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de
frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela
dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por
falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre
Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a
chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer,
se os nossos corações quiserem:
super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.
dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se
quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que
não há para que nos determos em mais prova.
vineae meae, et non feci?
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar
por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por
falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa
aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não
fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum
fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes, ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles
fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles
fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos
espinhos, nasceu, mas afogaram-no:
illud.
secou-se:
frutificou com grande multiplicação:
Simul exortae spinae suffocaveruntO trigo que caiu nas pedras, nasceu também, masEt natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu eEt natum fecit fructum centuplum.
De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e
frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu;
porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito
fruto e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz
efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos
espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas
pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras
e os espinhos. E porquê? – Os espinhos por agudos, as pedras por
duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades
endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos
agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a
esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a
picar a quem os não pica.
picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo
sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, e não é assim;
vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os
de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda
são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos
fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra
vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes
dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente
se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades
endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés
abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida:
Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae
.3
Induratum est cor Pharaonis
agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais
rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza,
nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os
espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria
deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse
a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que,
sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta
a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras,
nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações
secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende
confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos!
Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador
do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem
e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste
Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e
os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de
Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus
até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios
hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa,
nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos
da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por
parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por
parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto
a palavra de Deus? – Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores,
porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa nossa.
.4 E com os ouvintes de entendimentos
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação
tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas,
em qual consistirá esta culpa? – No pregador podem-se considerar
cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a
voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo
que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos
no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando
esta causa.
Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela
circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores
eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores
são eu e outros como eu? – Boa razão é esta. A definição
do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho
não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não
diz Cristo: saiu a semear o
semeia
que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra
coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa.
Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que
semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador
e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as
acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador,
ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o
exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito
que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? – É o
conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte
ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos,
antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são
tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou
o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a
pedra:
lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes
pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão:
tollebat citharam, et percutiebat manu sua.
comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar, faz-se
com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar
ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias
obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por
um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram
cem palavras? – Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram
muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem
ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? – Mandou
ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus,
enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus:
non factum
de Deus e obra de Deus juntamente:
maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou
Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com
a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo.
Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas
palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A
razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as
palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a
nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.
No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o
amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus
não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois
como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra
não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é
Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos
olhos:
de Deus pelos ouvidos:
crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes
em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão
seriam muito outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos,
conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram
uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o
auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos
e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção.
Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma
cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão
nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a
imagem do
bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as
bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo
o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha
dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos,
já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto
então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? – Porque então
era
do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura
entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco
abalo os nossos sermões? – Porque não pregamos aos olhos, pregamos
só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores?
– Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos,
o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam
penitência:
– e o exemplo clamava:
é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista
pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e
o exemplo clamava:
sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista
pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a
vaidade das galas; e o exemplo clamava:
está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício
à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros
do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo
clamava:
as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes
ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob
punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam,
e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados. Se quando
os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos
as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha
vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras
vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e
outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a
palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de
Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda
depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente, pouco caritativo,
pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria
estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso
de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos,
havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem
com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior
reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras.
Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo
tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado,
um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão
é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural.
Por isso Cristo comparou o pregar ao semear:
seminare.
uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes
tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura
tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria
tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte
sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador
do Evangelho. “Caía o trigo nos espinhos e nascia”:
inter spinas, et simul exortae spinae
e nascia”:
terra boa e nascia”:
trigo caindo e ia nascendo.
Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas e hão-de nascer;
tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo.
Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa!
Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio;
uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados,
outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não
vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está
aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair:
uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda
que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo,
há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de
cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas,
a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda
é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar;
hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hãode
ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é
para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada
que pareça caso e não estudo:
Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim
o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi
ele? – O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu.
Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum
– diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de
ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David;
tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos.
loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum.
quais são estes sermões e estas palavras do céu? – As palavras são
as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o
curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo
que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada
de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como
quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado,
mas como as estrelas:
estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não
é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas,
como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se
de uma parte há-de estar
de uma parte dizem
parte dizem
havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hãode
estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos
do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas
são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo
da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais
que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito
claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto;
tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham
muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas
estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o
matemático para as suas observações e para os seus juízos. De
maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever,
entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos
escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser
o sermão: – estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto.
Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o
querem honrar chamam-lhe
culto, os que o condenam chamamlhe
escuro
escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos
portugueses e havemos de ouvir um pregador em português
e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon
para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um
vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios,
porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor
que alegam é um enigma. Assim o disse o
o disse o
, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não éCeptro Penitente, assimEvangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o
Favo de Claraval
modo de alegar! O
todos os ceptros não foram penitência; o
é S. Lucas; o
Santo Agostinho; a
Ouro
de Belém
a
assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se
houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis
de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necedade,
como há-de ser discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo
pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com
Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro, com
Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia,
com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a
tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de
beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de
nossa queixa?"
[...]

 Padre Antônio Vieira

Levanta-te berzabu - Barroco

Lobo cerval, fantasma pecadora,
alimária cristã, salvage humana,
Que eras com vara pescador de cana,
Quando devias ser burro de nora.

Leve-te Berzabu, vai-te em má hora,
Levanta já daqui fato, e cabana,
E não pares senão na Trapobana,
Ou no centro da Líbia abrasadora.

Parta-te um rato, queime-te um corisco
Na cama estejas tu, sejas na rua,
Sepultura te dêem montes de cisco.

E toda aquela cousa, que for tua
Corra sempre contigo o mesmo risco,
Ó salvage cristã, ó besta crua.

 Gregório de Matos

Vós, diz Cristo Senhor - Barroco

“Vos estis sal terrae
Vós, diz Cristo, senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra; e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal.
O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?
Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra, ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem os seus apetites.
Não é tudo isto verdade? Ainda mal.”

Pe. Antônio Vieira

Um exemplo de poesia cultista - Barroco

"Se gostas da afetação e pompa de palavras
e do estilo que chamam culto, não me leias.
Quando este estilo florescia, nasceram as
primeiras verduras do meu; mas valeu-me
tanto sempre a clareza, que só porque me
entendiam comecei a ser ouvido. (...) Este
desventurado estilo que hoje se usa, os que
o querem honrar chamam-lhe culto, os que
o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda
lhe fazem muita honra. O estilo culto não é
escuro, é negro, e negro boçal e muito
cerrado. Ë possível que somos portugueses,
e havemos de ouvir um pregador em
português, e não havemos de entender o
que diz?!"

Gregório de Matos

Décima - Barroco

Estais dada a Bersabu,
Chica, e não tendes razão,
Sofrei-me Maria João,
pois eu vos sofro a Mungu:
vós dais ao rabo, e ao cu,
eu dou ao cu, e ao rabo,
vós com um Negro diabo,
eu com uma Negrinha brava,
pois fique fava por fava,
e quiabo por quiabo.
Vós heis de achar-me escorrido,
não vo-lo posso negar,
eu também o hei de achar
remolhado, e rebatido
assim é igual o partido,
e mesmíssima a razão,
porque quando o vosso cão
dorme c’oa a minha cadela,
que fique ela por ela,
diz um português rifão.
Vós dizeis-me irada e ingrata,
c’oa a mão na barguilha posta”
eu me verei bem disposta”
e eu digo-vos: “Quien se mata?”
eu vou-me à putinha grata,
e descarrego o culhão,
vós ides ao vosso cão,
e regalais o pasmado,
leve ao diabo enganado,
e andemos c’oa a procissão.
Chica, fazei-me justiça,
e não vo-la faça eu só,
eu vos deixo o vosso có,
vós deixai-me a minha piça:
e se o demo vos atiça
mamar numa e noutra teta,
pica branca e pica preta,
eu também por me fartar
quero esta pica trilhar,
numa grêta e nutra grêta.
Dizem que o ano passado
mantínheis dez fodilhões
branco um, nove canzarrões,
o branco era o dizimado,
o branco era o escornado,
por ter pouco, e brando nabo;
hoje o vosso sujo rabo
me quer a mim dizimar,
que não hei de suportar
ser dízimo do diabo.
Chica, dormi-vos por lá,
tendo de negros um cento,
que o pau branco é corticento,
e o negro jacarandá:
e deixai-me andar por cá
entre as negras do meu jeito,
mas perdendo-me o respeito,
se o vosso guardar quereis,
contra o direito obrareis,
sendo amiga do direito.
Sois puta de entranha dura,
e inda que amiga do alho
sois uma arranha-caralho
sem carinho, nem brandura
dou ao demo a puta escura,
que estando a tôdas exposta,
não faz festa ao de que gosta;
dou ao demo o quies vel qui,
e não para quem a encosta.
Quem não afaga o sendeiro,
de que gosta, e bem lhe sabe,
vá-se dormir cuma trave,
e esfregue-se num coqueiro:
seja o cono presenteiro,
faça o mínimo agasalho
ao membro, que lhe dá o alho,
e se de carinho é escassa,
ou vá se enforcar , ou faça,
do seu dedo o seu caralho.

Gregório de Matos

O tempo e o amor - Barroco

Amor e Tempo,Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera !
São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas, que partem do centro para a circunferência, que quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino; porque não há amor tão robusto que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza, o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não atira; embota-lhe as setas, com que já não fere; abre-lhe os olhos, com que vê o que não via; e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor ?! O mesmo amar é causa de não amar e o ter amado muito, de amar menos.

Padre Antônio Vieira

A cada canto um conselheiro - Barroco

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.

Gregório de Matos

Aos vicios - Barroco

Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro diferente.
Já sinto que me inflama e que me inspira
Talia, que anjo é da minha guarda
Dês que Apolo mandou que me assistira.
Arda Baiona e todo o mundo arda
Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.
Nenhum tempo excetua a cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liherdade.
A narração há de igualar ao caso
E se talvez acaso o não iguala
Não tenho por poeta o que é Pegaso.
De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente
Sempre se há de sentir o que se fa1a.
Qual homem pode haver tão paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia
Não chore, não suspire e não lamente?
Isto faz a discreta fantasia:
Discorre em um e outro desconcerto
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.
O néscio, o ignorante, o inexperto
Que não elege o bom, nem mau reprova
Por tudo passa deslumbrado e incerto.
E quando vê talvez na doce trova
Louvado o bem e o mal vituperado
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Diz logo prudentaço e repousado:
-Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.
Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazaras
Musas, que estimo ter, quando as invoco.
Se souberas falar, também falaras
Também satirizaras, se souberas
E se foras poeta, poetizaras.
A ignorancia dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não ‑--por não ter dentes.
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
Uma só natureza nos foi dada
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou e esse de nada.
Todos somos ruins, todos perversos,
Só nos distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos
Quem maior a tiver do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem‑se os mais chitom, e haja saúde.

 Gregório de Matos

A um comedor exagerado - Barroco

Levou um livreiro a dente

De alfaces todo um canteiro,

E comeu, sendo livreiro,

Desencadernadamente.

Porém eu digo que mente

A quem disso o quer tachar:

Antes é para notar

Que trabalhou como mouro,

Pois meter folhas no couro

Também é encadernar.

(A um músico esbordoado)

Uma grave entonação

Vos cantaram, Brás Luís,

Segundo se conta e diz,

Por solfa de fabordão.

Pelo compasso da mão,

Onde a valia se apura,

Parecia solfa escura:

Porque a mão nunca parava,

Nem no ar, nem no chão dava,

Sempre em cima da figura.

Gregório de Matos

Ardor em firme coração nascido - Barroco

Ardor em firme coração nascido;
pranto por belos olhos derramado;
incêndio em mares de água disfarçado;
rio de neve em fogo convertido:
tu, que em um peito abrasas escondido;
tu, que em um rosto corres desatado;
quando fogo, em cristais aprisionado;
quando crista, em chamas derretido.
Se és fogo, como passas brandamente,
se és fogo, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania,
como quis que aqui fosse a neve ardente,
permitiu parecesse a chama fria.

 Gregório de Matos

Sermão a Santo Antônio - Barroco

I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
II
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.
Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.
Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.
III
Este é, peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em acção de que o queria tragar. Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração para lançar fora os demónios: Cordis eius particulam, si super carbones ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o anjo, e assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um demónio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demónio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demónios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo António.
Abria Santo António a boca contra os hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo que vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga, quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demónios fora de casa.
Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis vós?! Só uma diferença havia entre Santo António e aquele peixe: que o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que se não queriam lavar.
Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes.
Passando dos da Escritura aos da história natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude tão celebrada da rémora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo!
Se alguma rémora houve na terra, foi a língua de Santo António, na qual, como na rémora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da rémora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua de Santo António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de António quanta força tinha, como rémora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se a rémora da língua de António lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribdes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se vêem e choram na terra tantos naufrágios.
Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador.
Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
Vinte e dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo António, e às palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.
Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro.
Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos!
Filosofando, pois, sobre a causa natural desta providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitectura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.
Oh que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno. Não me alegou para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer David em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, ne videant vanitatem. «Voltai-me, Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»
Pois David não podia voltar os seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo «tudo é vaidade»: Vanitas vanitatum et omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo em ambos seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu, ou para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão pequeno.
Mas ainda que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todas as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que, proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos, nenhum dia vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos celestes, mas os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: Spiritus Domini foecundabat aquas.
Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio. Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e os salmões são muito contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se peixes mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua bênção.
IV
Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?
Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis? «Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão.
A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.
Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos.
Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:
Vos quibus rector maris, atque terrae
Ius dedit magnum necis, atque vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis dominus minatur.
Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: «Governador do mar e da terra»; para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens na terra, observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse: Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem: «Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte», que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris. Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes?
Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as linhas, contra vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim, e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza. Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.
Outra cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?
Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros.
Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doiradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
V
Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder: Nescis quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.
Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.
Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do mar.
Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.
Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt enim qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino, eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes, todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri.
Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo António.
Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que «eu só me quero pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez menor, para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles.
Considerai, pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da vossa ignorância com quanta água tem o mar.
Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto!
Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas.
À vista deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés.
Não quero que repareis no castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat, subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret. Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.
Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram dadas duas grandes asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para quê? Ut volaret in desertum: «Para voar ao deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo, mulier amicta sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros.
Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor!
Oh que excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá disse o Profeta por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!
Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo.
Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam excomungados e malditos.
Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente.
Mandou Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra primeiro que os demais?
Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta.
Oh que boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes.
VI
Com esta última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares. Também este ponto era muito importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o respeito e a reverência.
Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de ver; mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora não nascer homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a Deus pelo vosso.
Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.

 Padre Antônio Vieira