sexta-feira, 17 de junho de 2011

Literatura Informativa

Poemas

História de uma viagem feita a terra do Brasil de Jean Lery
13.História de uma viagem feita a terra do Brasil
Voltando ao meu assunto, antes de falar nas carnes, peixes, frutas e outros mantimentos bem diversos dos da Europa, direi qual a bebida que usam os selvagens e o modo de faze-la. Cumpre, desde logo, notar que os homens não se envolvem de maneira nenhuma na preparação da bebida, a qual, como a farinha, está a cargo das mulheres. As raízes de aipim e mandioca, que servem de principal alimento aos selvagens, são também utilizadas no preparo de uma bebida usual. Depois de as cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as depois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que tudo esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em vasos de barro de capacidade igual a uma pipa de vinho de Borgonha. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. Esses vasos têm o feitio das grandes cubas de barro nas quais vi fazer-se a lixívia em alguns lugares do Bourbonais e da Auvergne; são entretanto mais estreitas no alto que no bojo.

Fazem o mesmo com a avati, a fim de preparar uma bebida do milho. São as mulheres, como já disse, que tudo fazem nessa preparação, tendo os homens a firme opinião de que se eles mastigarem as raízes ou o milho a bebida não sairá boa.”
“Antes de terminar tal assunto, e a fim de que os leitores se convençam de que se tivessem vinho à vontade enxugariam galhardamente o copo, vou contar uma história tragicômica, que em sua aldeia me contou um mussacá, isto é, um bom e hospitaleiro pai de família.
‘Surpreendemos uma vez, disse ele na sua rude linguagem, uma caravela de pêros (isto é, portugueses, que como já referi são inimigos mortais dos nossos tupinambás) na qual, de mortos e comidos todos os homens e recolhida a mercadoria existente, encontramos grandes caramemos (tonéis e outras vasilhas de madeira) cheias de bebida que logo tratamos de provar. Não sei qual qualidade de cauim era, nem se o tendes no vosso país; só sei dizer que depois de bebermos ficamos por três dias de tal forma prostrados e adormecidos que não podíamos despertar.’ É verossímil que fossem tonéis de bom vinho da Espanha, com os quais os selvagens, sem o saber, festejaram a Baco. Não é pois de admirar que o nosso homem se tivesse sentido tão repentinamente atordoado.
No que diz nos diz respeito, ao chegarmos a esse país procuramos evitar a mastigação no preparo do cauim e faze-lo de modo mais limpo. Por isso pilamos raízes de aipim e mandioca com milho, mas, para dizer a verdade, a experiência não provou bem. Pouco a pouco, nos habituamos a beber o cauim da outra espécie, embora não o fizéssemos comumente, pois tendo cana à vontade punhamo-la de infusão por alguns dias na água depois de refresca-la um pouco por causa do grande calor; e assim açucarada bebíamos a água com grande prazer.”
“Imediatamente depois de morto o prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta curto pranto; digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama fingidas lágrimas sobre o marido mas sempre na esperança de comer-lhe um pedaço. Em seguida, as outras mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas da carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros chegam com a água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão de cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o espostejam com tal rapidez que não faria melhor um carniceiro de nossa terra ao esquartejar um carneiro. E então, incrível crueldade, assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torna-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos uns após outros e lhes esfregam o corpo, os braços, e as pernas com o sangue inimigo a fim de torna-los mais valentes.
Depois da chegada dos cristãos a esse país, principiaram os selvagens a cortar e retalhar o corpo dos prisioneiros, animais e outras presas com facas e ferramentas dadas pelo estrangeiro, o que faziam antes com pedras aguçadas como me foi dito por um ancião.
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer ‘está muito bom’.”



05.Das arvores agrestes do Brasil de Frei Vicente do Salvador
05.Das arvores agrestes do Brasil

Há no Brasil grandíssimas matas de árvores agrestes, cedros,
carvalhos, vinháticos, angelins e outras não conhecidas em Espanha,
de madeiras fortíssimas para se poderem fazer delas fortíssimos
galeões e, o que mais é, que da casca de almas se tira estopa para se
calafetarem e fazem cordas para enxárcia e amarras, do que tudo se
aproveitam os que querem cá fazer navios, e se pudera aproveitar
el-rei se cá os mandara fazer. Mas os índios naturais da terra as
embarcações de que usam são canoas de um só pau, que lavram a
fogo e a ferro; e há paus tão grandes que ficam depois de cavadas
com dez palmos de boca de bordo a bordo, e tão compridas que
remam a vinte remos por bandas.

04.Não bastam forças humanas de José de Anchieta
04.Não bastam forças humanas

Não bastam forças humanas
Não digo para louvar,
Mas nem para bem cuidar
As mercês tão saborosas
Que com amor singular.
Deus eterno,
Abrindo o peito paterno,
Para que possa escapar
Do bravo fogo do inferno
E salvação alcançar.

03.Santa Maria de José de Anchieta
03.Santa Maria
Compaixão da Virgem na morte do Filho
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,

e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,

que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,

ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,

ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,

todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas

pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado

o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,

agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira

do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio

retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,

e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,

mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo

as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego

os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,

e c’o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua

misturado com sangue um rio todo d’água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama

para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,

tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina

cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada

a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,

ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,

se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,

porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,

que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?

que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,

em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,

em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,

pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:

colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,

à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega

do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência

do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga

quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,

ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:

era uma só e a mesma a vida de vós dois!

Pois se teu coração o conserva, e jamais

deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,

com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,

e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,

quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?

e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,

se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,

se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p’ra sofrer mais canseira:

já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:

eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,

fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,

faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!

tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:

que pregassem teus pés, teus punhos virginais.

Ele tomou p’ra si todo o cravo e madeiro

e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:

Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:

só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,

o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,

todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!

Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!

Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos

e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,

cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,

abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!

Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:

mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:

por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,

sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna

da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:

quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,

possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,

terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,

e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,

me será doce a vida, e será doce a morte!
terça-feira, 7 de junho de 201114.Em Deus, meu criador de José de Anchieta
Em Deus, Meu Criador

[...]



Não há coisa segura.



Tudo quanto se vê se vai passando.



A vida não tem dura.



O bem se vai gastando.



Toda a criatura passa voando.



[...]



Contente assim minh'alma,



do doce amor de Deus toda ferida,



o mundo deixa em calma,



buscando a outra vida,



no qual deseja ser absorvida.



[...]

11.Ao Santíssimo Sacramento de José de Anchieta
Ao Santíssimo Sacramento
Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar

Cada dia.


Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou

Crua morte.


E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento

Sua graça.


Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores

Esforçados.


Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão

Transitória.


Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento

Divinal.


Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem

Se contêm.


É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda

Do pecado.


Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,

A comer.


Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,

Isso basta.


Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor

Tudo abrasa.


É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam

De contino.


Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda

Satisfeita.


Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar

Nas entranhas.


Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar

De quem ama.


Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções

Copiosas.


Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor

Humanado!


Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende

Com tais nós?!


Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,

Se mudar.


Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção

De manjar,


Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes

Escondidos.


Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor

Filial,


Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento

De quem são,


Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores

Quis sofrer.


E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado

Desta vida.


Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém

Que buscamos!


Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração

Tem fartura.


Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,

Esta é.


Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos

Sem mudança.


Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado

Nos está.


A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada

Em pureza.


Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,

Pão de glória.


Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor

Verdadeiro.


Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,

Meu Amor.


Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,

Deus e Pai.


Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido

Para vós


Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,

que comprastes


Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes

Padecer.


Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi

Em amar-me.


Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo

Me mudais.


Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário

Que vos guarda.


Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto

Deste pão


Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite

De minha alma.


Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,

Doce beijo.


Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo

De perder.


Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,

Doce amor.


Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte

Com vos ver.

06.Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens de José de Anchieta
Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens
Diabo - Temos embargos, donzela
a serdes deste lugar.
Não me queirais agravar,
que, com espada e rodela,
vos hei de fazer voltar.
Se lá na batalha do mar
me pisastes,
quando as onze mil juntastes,
que fizestes em Deus crer,
não há agora assim de ser.
Se, então, de mim triunfastes,
hoje vos hei de vencer.
Não tenho contradição
em toda a Capitania.
Antes, ela, sem porfia,
debaixo de minha mão
se rendeu com alegria.
Cuido que errastes a via
e o sol tomastes mal.
Tornai-vos a Portugal,
que não tendes sol nem dia,
senão a noite infernal
de pecados,
em que os homens, ensopados,
aborrecem sempre a luz.
Se lhes falardes na Cruz,
dar-vos-ão, mui agastados,
no peito, com um arcabuz.
(Aqui dispara um arcabuz.)
Anjo - Ó peçonhento dragão
e pai de toda a mentira,
que procuras perdição,
com mui furiosa ira,
contra a humana geração!
Tu, nesta povoação,
não tens mando nem poder,
pois todos pretendem ser,
de todo seu coração,
inimigo de Lucifer.
Diabo - Ó que valentes soldados!
Agora me quero rir!...
Mal me podem resistir
os que fracos, com pecados,
não fazem senão cair!
Anjo - Se caem, logo me levantam,
e outros ficam em pé.
Os quais, com armas da fé,
te resistem e te espantam,
porque Deus com eles é.
Que com excessivo amor
lhes manda suas esposas
- onze mil virgens formosas -,
cujo contínuo favor
dará palmas gloriosas.
E para te dar maior pena,
a tua soberba inchada
quer que seja derrubada
por uma mulher pequena.
Diabo - Ó que cruel estocada
me atiraste
quando a mulher nomeaste!
Porque mulher me matou,
mulher meu poder tirou,
e, dando comigo ao traste,
a cabeça me quebrou.
Anjo - Pois agora essa mulher
traz consigo estas mulheres,
que nesta terra hão de ser
as que lhe alcançam poder
para vencer teus poderes.
Diabo - Ai de mim, desventurado!
(Acolhe-se Satanás.)
Anjo - Ó traidor, aqui jarás
de pés e mãos amarrado,
pois que perturbas a paz
deste pueblo sossegado!
Diabo - Ó anjo, deixa-me já,
que tremo desta senhora!
Anjo - Com tanto que te vás fora
e nunca mais tornes cá.
Diabo - Ora seja na má hora!
(Indo-se, diz ao povo:)
Ó, deixai-vos descansar
sobre esta minha promessa:
eu darei volta, depressa,
a vossas casas cercar
e quebrar-vos a cabeça!

II
Vila - Mais rica me vejo agora
que nunca dantes me vi,
pois que ter-vos, mereci,
virgem mártir, por senhora.
O Senhor onipotente
me fez grande benefício,
dando-me aquela excelente
legião da esforçada gente
do grande mártir Maurício.
Neste dia
se dobra minha alegria
com vossa vinda, Senhora.
E, pois a Capitania
hoje tem maior valia,
mais rica me vejo agora.
Com a perpétua memória
de vossa mui santa vida
e da morte esclarecida,
com que alcançastes vitória,
morrendo sem ser vencida,
serei mais favorecida,
pois vindes moram em mim.
Porque, tendo-vos aqui,
fico mais enriquecida
que nunca dantes me vi.
Da Senhora da Vitória,
"Vitória" sou nomeada.
E, pois sou de vós amada,
de onze mil virgens na glória
espero ser coroada.
Por vós sou alevantada
mais do que nunca subi,
para que, subindo assim,
não seja mais derrubada,
pois que ter-vos mereci.
Meus filhos ficam honrados
em vos terem por princesa,
porque, de sua baixeza,
por vós serão levantados
a ver a divina alteza.
Tudo temos,
pois que tendo a vós, teremos
a Deus, que convosco mora,
e logos, desde esta hora,
todos vos reconhecemos,
virgem mártir, por Senhora.
Um companheiro de São Maurício
vem ao caminho à virgem, e diz:
Toda esta Capitania,
virgem mártir gloriosa,
está cheia de alegria,
pois recebe, neste dia,
uma mãe tão piedosa.
Nós somos seus padroeiros,
com toda nossa legião
dos tebanos cavaleiros,
soldados e companheiros
de Maurício Capitão.
Ele espera já por vós
e tem prestes a pousada
para, com vossa manada,
serdes, como somos nós,
deste lugar advogada.
Úrsula - Para isso sou mandada.
E com vossa companhia,
faremos mui grossa armada,
com que seja bem guardada
a nossa capitania.

III
Ao entrar da igreja, fala São Maurício com são Vital, e diz:
Maurício - Não bastam forças humanas,
não digo para louvar,
mas nem para bem cuidar
as mercês tão soberanas
que, com amor singular,
Deus eterno,
abrindo o peito paterno,
faz a todo este lugar,
para que possa escapar
do bravo fogo do inferno,
e salvação alcançar.
Ditosa capitania,
que o sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor!
Vital - Ditosa, por certo, é,
se não for desconhecida,
ordenando sua vida
de modo que junte a fé
com caridade incendida.
Porque as mercês divinais
então são agradecidas
quando os corações leais
ordenam bem suas vidas
conforme as leis celestiais.
Maurício - Bem dizeis, irmão Vital,
e, por isso, os sabedores
dizem que obras são amores,
com que seu peito leal
mostram os bons amadores.
Vital - E destes, quantos cuidais
que se acham nesta terra?
Maurício - Muitos há, se bem olhais,
que contra os vícios mortais
andam em perpétua guerra,
e guardando, com cuidado,
a lei de seu Criador,
mostram bem o fino amor
que têm, no peito encerrado,
de Iesu, seu Salvador.
Vital - Estes tais sempre terão
lembrança do benefício
de terem por seu patrão,
com toda nossa legião,
a vós, Capitão Maurício.
Maurício - Assim têm.
E, por isso, o sumo bem
lhes manda aquelas senhoras
onze mil virgens, que vêm
para conosco, também,
serem suas guardadoras.
Vital - Tão gloriosas donzelas
merecem ser mui honradas.
Maurício - E conosco agasalhadas,
pois que são virgens tão belas,
de martírio coroadas!
Recebendo a virgem, diz:
Úrsula, grande princesa,
do sumo Deus mui amada,
boa seja a vossa entrada,
grande pastora e cabeça
de tão formosa manada!
Úrsula - Salve, grande Capitão
Maurício, de Deus querido!
Este povo é defendido
por vós e vossa legião
e nosso Deus mui servido.
Sou dele agora mandada
a ser vossa companheira.
Maurício - Defensora e padroeira
desta gente tão honrada,
que segue nossa bandeira.
Nós deles somos honrados,
eles guardados de nós.
Porque não sejamos sós,
serão agora ajudados
conosco também, de vós.
Úrsula - Se os nossos portugueses
nos quiserem sempre honrar,
sentirão poucos reveses.
De ingleses e franceses
seguros podem estar.
Vital - Quem levantará pendão
contra seis mil cavaleiros
de nossa forte legião,
e contra o grande esquadrão
de vossos onze milheiros?
Úrsula - Os três inimigos da alma
começam a desmaiar.
E, pois tem este lugar
nome de Vitória, e palma,
sempre deve triunfar.
Vitória - Isso é o que Deus quer.
Guardem eles seu mandado,
que nós teremos cuidado de guardar e engrandecer
este nosso povo amado.
Se quereis
aqui ficar, podereis.
Nem tendes melhor lugar
que aquele santo altar
no qual, conosco, sereis
venerada sem cessar.
Úrsula - Seja assim!
Recolhamo-nos aí,
com nosso senhor Jesus,
por cujo amor padeci,
abraçada com a cruz
em que ele morreu por mim.
Levando-a ao altar, lhe cantam:
Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
pois ele, com sua cruz,
vos coube dentro no peito.
Ó virgem de grão respeito,
entrai ad altare Dei,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei

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