quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sermão da Sexagéssima - Barroco

. S. Lucas, VIII, 11.
I
E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório
saísse hoje tão desenganado da pregação, como vem enganado
com o pregador! Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que
todo é do caso que me levou e trouxe de tão longe.
Ecce exiit qui seminat, seminare
evangélico a semear” a palavra divina. Bem parece este texto
dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas também
faz caso do sair:
a semeadura e hão-nos de contar os passos. O Mundo, aos que
lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga
o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até
o sair é semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre
os semeadores do Evangelho há uns que saem a semear, há outros
que semeiam sem sair. Os que saem a semear são os que vão
pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem sair, são
os que se contentam com pregar na Pátria. Todos terão sua razão,
mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em casa, pagar-lhesão
a semeadura; aos que vão buscar a seara tão longe, hão-lhes
de medir a semeadura e hão-lhes de contar os passos. Ah Dia do
Juízo! Ah pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais paço; os
de lá, com mais passos:
Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo
que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque
os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar
e propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem.
Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da
glória de Deus e significavam os pregadores do Evangelho, que
propriedades tinham?
vez que iam, não tornavam”. As rédeas por que se governavam
era o ímpeto do espírito, como diz o mesmo texto; mas esse espírito
tinha impulsos para os levar, não tinha regresso para os trazer;
porque sair para tornar, melhor é não sair. Assim arguís com
muita razão, e eu também assim o digo. Mas pergunto: E se esse
semeador evangélico, quando saiu, achasse o campo tomado; se
se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele
as pedras, e se lhe fechassem os caminhos, que havia de fazer?
Todos estes contrários que digo e todas estas contradições experimentou
o semeador do nosso Evangelho. Começou ele a semear
(diz Cristo), mas com pouca ventura. “Uma parte do trigo caiu
entre espinhos, e afogaram-no os espinhos”:
spinas, et simul exortae spinae suffocaverunt illud
caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de humidade”:
Nec revertebantur, cum ambularent: “UmaAliud cecidit inter. “Outra parte
Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem.
“Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e
comeram-no as aves”:
est, et volucres coeli comederunt illud.
criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as
criaturas quantas há no Mundo se reduzem a quatro géneros: criaturas
racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os
animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis,
como as pedras; e não há mais. Faltou alguma destas que
se não armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensível
o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva
nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraça do trigo,
que onde só podia esperar razão, ali achou maior agravo. As pedras
secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no;
e os homens? Pisaram-no:
a Glossa).
Quando Cristo mandou pregar os Apóstolos pelo Mundo, disselhes
desta maneira:
creaturae
Os animais não são criaturas?! As árvores não são criaturas?! As
pedras não são criaturas?! Pois hão os Apóstolos de pregar às pedras?!
Hão-de pregar aos troncos?! Hão-de pregar aos animais?!
Sim, diz S. Gregório, depois de Santo Agostinho. Porque como os
Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas
bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em
todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens homens,
haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos,
haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evangélicos
vão pregar a toda a criatura, que se armem contra eles todas
as criaturas?! Grande desgraça!
Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho não foi a maior.
A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e
para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram
lá os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado,
trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado:
aruit, quia non habebat humorem
suffocaverunt illud
trigo pisado:
evangélicos da missão do Maranhão de doze anos a esta
parte. Houve missionários afogados, porque uns se afogaram na
boca do grande rio das Amazonas; houve missionários comidos,
porque a outros comeram os bárbaros na ilha dos Aroãs; houve
missionários mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos
Tocantins, mirrados da fome e da doença, onde tal houve, que
andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a
sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra
bem o
sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e
perseguidos dos homens:
o digo, Senhor, pelos semeadores; só pela seara o digo, só pela
seara o sinto. Para os semeadores, isto são glórias: mirrados sim,
mas por amor de vós mirrados; afogados sim, mas por amor de vós
afogados; comidos sim, mas por amor de vós comidos; pisados e
perseguidos sim, mas por amor de vós perseguidos e pisados.
Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que
devia fazer o semeador evangélico, vendo tão mal logrados seus
primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira?
Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque tinha lá ido? Parece que
não. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos
com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto
desistir? Seria isto tornar atrás? – Não por certo. No mesmo texto
de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. Já vimos como dizia
o texto, que aqueles animais da carroça de Deus, “quando iam
não tornavam”:
dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que
“aqueles animais tornavam, e semelhança de um raio ou corisco”:
Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora
Ibant et revertebantur in similitudinem fulguris coruscantis.
se os animais iam e tornavam à semelhança de um raio, como
diz o texto que quando iam não tornavam? Porque quem vai e
volta como um raio, não torna. Ir e voltar como raio, não é tornar,
é ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho.
Não o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira
perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade,
que nesta quarta e última parte do trigo se restauraram com vantagem
as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu,
colheu-se, mediu-se, achou-se que por um grão multiplicara
cento:
PoisEt fecit fructum centuplum.
Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que
grande exemplo me dá este semeador! Dá-me grandes esperanças
a sementeira, porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos,
lograr-se-ão os últimos. Dá-me grande exemplo o semeador,
porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte
do trigo, aproveitou a quarta e última, e colheu dela muito fruto. Já
que se perderam as três partes da vida, já que uma parte da idade a
levaram os espinhos, já que outra parte a levaram as pedras, já que
outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta
e última parte, este último quartel da vida, porque se perderá também?
Porque não dará fruto? Porque não terão também os anos o
que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os
frutos. Porque não terá também o seu Outono a vida? As flores,
umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento;
aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto,
só essas são as venturosas, só essas são as que aproveitam, só essas
são as que sustentam o Mundo. Será bem que o Mundo morra
à fome? Será bem que os últimos dias se passem em flores? – Não
será bem, nem Deus quer que seja, nem há-de ser. Eis aqui porque
eu dizia ao princípio, que vindes enganados com o pregador. Mas
para que possais ir desenganados com o sermão, tratarei nele uma
matéria de grande peso e importância. Servirá como de prólogo
aos sermões que vos hei-de pregar, e aos mais que ouvirdes esta
Quaresma.
II
Semen est verbum Dei
O trigo que semeou o pregador evangélico, diz Cristo que é a palavra
de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa
em que o trigo caiu, são os diversos corações dos homens. Os
espinhos são os corações embaraçados com cuidados, com riquezas,
com delícias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras
são os corações duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de
Deus, e se nasce, não cria raízes. Os caminhos são os corações
inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do
Mundo, umas que vão, outras que vêm, outras que atravessam, e
todas passam; e nestes é pisada a palavra de Deus, porque a desatendem
ou a desprezam. Finalmente, a terra boa são os corações
bons ou os homens de bom coração; e nestes prende e frutifica
a palavra divina, com tanta fecundidade e abundância, que ´nse
colhe cento por um˙z:
Et fructum fecit centuplum.
Este grande frutificar da palavra de Deus é o em que reparo
hoje; e é uma dúvida ou admiração que me traz suspenso e confuso,
depois que subo ao púlpito. Se a palavra de Deus é tão eficaz
e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?
Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me
contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem
sermões se convertera e emendara um homem, já o Mundo fora
santo. Este argumento de fé, fundado na autoridade de Cristo, se
aperta ainda mais na experiência, comparando os tempos passados
com os presentes. Lede as histórias eclesiásticas, e achá-laseis
todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de
Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta
reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e
vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas;
as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas
covas; e hoje? – Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas
pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se
semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um
homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um
moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que
é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim
a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois
se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem
hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da
palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a
matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim
será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que
aprendais a ouvir.
III
Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder
de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte
do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por
meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o
pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte
com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a
graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias
três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego,
não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é
de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há
mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma
alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo?
Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário
espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina;
Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com
os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das
almas por meio da pregação depende destes três concursos: de
Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender
que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por
parte de Deus?
Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar.
Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no
nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador,
uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas
três? – A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos;
a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram
os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo;
mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo
se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente
se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela
intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou
porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na
parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do
sol ou da chuva? – Porque o sol e a chuva são as influências da
parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus,
nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de
frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela
dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por
falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre
Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a
chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer,
se os nossos corações quiserem:
super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.
dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se
quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que
não há para que nos determos em mais prova.
vineae meae, et non feci?
Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar
por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por
falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa
aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não
fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum
fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.
Os ouvintes, ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles
fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles
fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos
espinhos, nasceu, mas afogaram-no:
illud.
secou-se:
frutificou com grande multiplicação:
Simul exortae spinae suffocaveruntO trigo que caiu nas pedras, nasceu também, masEt natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu eEt natum fecit fructum centuplum.
De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e
frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu;
porque a palavra de Deus é tão fecunda, que nos bons faz muito
fruto e é tão eficaz que nos maus, ainda que não faça fruto, faz
efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos
espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas
pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras
e os espinhos. E porquê? – Os espinhos por agudos, as pedras por
duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades
endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos
agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a
esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a
picar a quem os não pica.
picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo
sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou a vós, e não é assim;
vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os
de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda
são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos
fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra
vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes
dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente
se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades
endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés
abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida:
Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae
.3
Induratum est cor Pharaonis
agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais
rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza,
nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.
Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os
espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria
deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse
a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que,
sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta
a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras,
nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos, corações
secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende
confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos!
Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador
do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem
e esses mesmos espinhos o coroem.
Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste
Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e
os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de
Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus
até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios
hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa,
nem por indisposição dos ouvintes.
Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos
da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por
parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por
parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto
a palavra de Deus? – Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores,
porque não faz fruto a palavra de Deus? – Por culpa nossa.
.4 E com os ouvintes de entendimentos
IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação
tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas,
em qual consistirá esta culpa? – No pregador podem-se considerar
cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a
voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo
que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos
no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando
esta causa.
Será porventura o não fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela
circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregadores
eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores
são eu e outros como eu? – Boa razão é esta. A definição
do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho
não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não
diz Cristo: saiu a semear o
semeia
que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra
coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa.
Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que
semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador
e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é acção; e as
acções são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador,
ou ser pregador de nome, não importa nada; as acções, a vida, o
exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito
que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? – É o
conceito que de sua vida têm os ouvintes.
Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se não converte
ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos,
antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são
tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de David derrubou
o gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a
pedra:
lançavam fora os demónios do corpo de Saul, mas não eram vozes
pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão:
tollebat citharam, et percutiebat manu sua.
comparou o pregador ao semeador. O pregar que é falar, faz-se
com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar
ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias
obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por
um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram
cem palavras? – Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram
muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem
ser só palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? – Mandou
ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus,
enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus:
non factum
de Deus e obra de Deus juntamente:
maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras não fiou
Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com
a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo.
Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas
palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A
razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras vêem-se; as
palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a
nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos.
No Céu ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o
amar. Na terra há tão poucos que o amem, todos o ofendem. Deus
não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu e na Terra? Pois
como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra
não? A razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é
Deus ouvido. No Céu entra o conhecimento de Deus à alma pelos
olhos:
de Deus pelos ouvidos:
crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes
em nós o que nos ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão
seriam muito outros.
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos,
conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram
uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o
auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos
e que lha pregaram na cabeça; ouvem todos com a mesma atenção.
Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma
cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão
nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina, aparece a
imagem do
bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as
bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo
o que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha
dito daquela púrpura, já tinha dito daquela coroa e daqueles espinhos,
já tinha dito daquele ceptro e daquela cana. Pois se isto
então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? – Porque então
era
do pregador entrava pelos ouvidos a representação daquela figura
entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco
abalo os nossos sermões? – Porque não pregamos aos olhos, pregamos
só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores?
– Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos,
o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam
penitência:
– e o exemplo clamava:
é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista
pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e
o exemplo clamava:
sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista
pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a
vaidade das galas; e o exemplo clamava:
está o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilício
à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros
do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo
clamava:
as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes
ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de converter? Jacob
punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam,
e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados. Se quando
os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos
as nossas manchas, como hão-de conceber virtudes? Se a minha
vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras
vão já refutadas nas minhas obras, se uma coisa é o semeador e
outra o que semeia, como se há-de fazer fruto?
Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a
palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de
Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda
depois de engolido e vomitado, iracundo, impaciente, pouco caritativo,
pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria
estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso
de ver subvertida a Nínive e de a ver subverter com seus olhos,
havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem
com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o maior
reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras.
Outra é logo a causa que buscamos. Qual será?
V
Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo
tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado,
um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razão
é também esta. O estilo há-de ser muito fácil e muito natural.
Por isso Cristo comparou o pregar ao semear:
seminare.
uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes
tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitectura
tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria
tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte
sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador
do Evangelho. “Caía o trigo nos espinhos e nascia”:
inter spinas, et simul exortae spinae
e nascia”:
terra boa e nascia”:
trigo caindo e ia nascendo.
Assim há-de ser o pregar. Hão-de cair as coisas e hão-de nascer;
tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo.
Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa!
Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio;
uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados,
outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não
vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está
aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair:
uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda
que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo,
há-de ter três modos de cair: há-de cair com queda, há-de
cair com cadência, há-de cair com caso. A queda é para as coisas,
a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda
é para as coisas, porque hão-de vir bem trazidas e em seu lugar;
hão-de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hãode
ser escabrosas nem dissonantes; hão-de ter cadência. O caso é
para a disposição, porque há-de ser tão natural e tão desafectada
que pareça caso e não estudo:
Cecidit, cecidit, cecidit.
Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim
o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi
ele? – O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu.
Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum
– diz David. Suposto que o céu é pregador, deve de
ter sermões e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David;
tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos.
loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum.
quais são estes sermões e estas palavras do céu? – As palavras são
as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o
curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo
que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada
de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como
quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado,
mas como as estrelas:
estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não
é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas,
como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se
de uma parte há-de estar
de uma parte dizem
parte dizem
havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hãode
estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos
do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas
são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo
da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais
que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito
claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto;
tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham
muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas
estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o
matemático para as suas observações e para os seus juízos. De
maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever,
entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos
escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser
o sermão: – estrelas que todos vêem, e muito poucos as medem.
Sim, Padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto.
Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o
querem honrar chamam-lhe
culto, os que o condenam chamamlhe
escuro
escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. E possível que somos
portugueses e havemos de ouvir um pregador em português
e não havemos de entender o que diz?! Assim como há Lexicon
para o grego e Calepino para o latim, assim é necessário haver um
vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomara para os nomes próprios,
porque os cultos têm desbaptizados os santos, e cada autor
que alegam é um enigma. Assim o disse o
o disse o
, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não éCeptro Penitente, assimEvangelista Apeles, assim o disse a Águia de África, o
Favo de Claraval
modo de alegar! O
todos os ceptros não foram penitência; o
é S. Lucas; o
Santo Agostinho; a
Ouro
de Belém
a
assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se
houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis
de ter por néscio? Pois o que na conversação seria necedade,
como há-de ser discrição no púlpito?
Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos pelo
pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com
Ambrósio, com Crisólogo, com Leão, e pelo escuro e duro, com
Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia,
com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a
tamanhos autores, posto que desejáramos, nos que se prezam de
beber destes rios, a sua profundidade. Qual será logo a causa de
nossa queixa?"
[...]

 Padre Antônio Vieira

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